Taturanas – Um conto sombrio sobre medo, infância e culpa
- Pedro Sucupira
- 12 de jul. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: 25 de mai.
“Qualquer um que comporte-se acordado da mesma maneira que se comporta nos sonhos será visto como louco.”
Sigmund Freud
Foi tão real que não parecia um sonho.
Estava em uma cabana de madeira, aconchegante e calorosa, semelhante àqueles chalés de montanha onde trabalhadores se refugiam aos fins de semana, fugindo da cidade e cercando-se de neve e silêncio. Debruçado no parapeito de uma das janelas, envolto em roupas invernais e um gorro macio, observava o que se passava do lado de fora. Não havia árvores, tampouco acidentes geográficos; apenas uma planície branca, absolutamente homogênea, coberta por neve. Para onde se estendia aquele terreno, não era dado saber, pois uma névoa branca acinzentada pairava no horizonte, se é que havia horizonte.
Mas não era a vastidão branca o que mais me intrigava, e sim as criaturas. Altas como girafas, de pele áspera e cor de musgo, curvadas como cabos de guarda-chuva, caminhavam em passos lentos pelo terreno gelado. Suas vértebras se sobressaiam de tal maneira que pareciam prestes a rasgar a pele, já esticada. Andavam como sentinelas descompassadas, seguidas por caudas bifurcadas e volumosas. Farejavam o ar com seus focinhos desmesurados, olhos arregalados e sem esclera, sem íris, apenas uma púpila amarela inteiramente dilatada. A respiração quente condensava-se no ar frio em grandes lufadas, tornando-as chaminés ambulantes.
No cerne onírico, eu sabia que procuravam por mim. Sair da cabana seria, ao mesmo tempo, improvável e desnecessário. Ali estava seguro. Meu refúgio. A comida era inesgotável, as poltronas, sempre limpas; a água do banho, perpetuamente quente. Roupas confortáveis, recentemente lavadas e com perfume de amaciante. Diversão havia em excesso. Era meu lugar ideal. Ali, era feliz, pois nada podia me ferir.
Nesse mundo onírico, eu era um adulto no corpo de uma criança. Pensava e julgava como um homem maduro, mas trajava-se a infância em carne. Que circunstância me obrigara a amadurecer tão cedo? Que força, que catástrofe me moldara num adulto precoce ou numa criança degeneradamente madura? Não sabia dizer. Mas sabia que minha aparência juvenil enganava a todos e, por vezes, a mim convinha essa dissimulação. Manipulava quando preciso, e agora, nesse teatro onírico, usaria minhas artimanhas para descobrir meu algoz. Aquele que, desde tão cedo, me arruinara. Cuja ação causara um lapso de escuridão, esquecimento e raiva. Esse monstro que me transformara num adulto infantilizado, pessimista agressivo, depressivo desejoso de viver, pensante curioso e que sofria ao saber. Tudo isso antes mesmo de poder me arruinar por conta própria. Aquele que me arrancara a criança e me entregara a ruína precoce. Agora, fora do sonho, sou o adulto que sofre por lembrar da criança que não foi.
Era esse o fim do meu subconsciente: reaver a narrativa, impor-me a verdade, revelar-me sem as máscaras da conveniência. Um órfão de pais vivos e presentes. Um solitário entre familiares piegas, que, carentes, despejavam em mim, criança adulta de traumas antigos, todas as frustrações que nem eles suportavam. Para eles, eu era inocente; minha mente, incapaz de compreender a podridão das suas vidas natalinas, onde a hipocrisia era o laço mais estreito.
***
Acordei da contemplação da janela. Do lado de fora, o mundo consciente, frio, com seus monstros. Dentro, o subconsciente. Fui ao banheiro.
No banho, usufruindo os últimos minutos daquela água quente e redentora, a água de uma criança sem boletos e abusos, reparei no ralo. Algo se movia sob os pequenos orifícios. Curioso, abaixei-me, ajoelhei-me, e, como numa flexão, aproximei o rosto do ralo. Então, um susto. O corpo reagiu — escorreguei, caí, bati o rosto no piso.
Lá estava ela: uma taturana verde-musgo, dorso coberto por pelos verde-fluorescentes. O contraste criava uma ilusão de movimento. Caído, a água batendo nas costas, eu me arrepiava observando aquela criatura lutar contra a corrente.

Sempre temi taturanas, todas elas. Minha mente fóbica as igualava, sem distinção. Todas perigosas, todas dolorosas. Esse medo era o meu mascote, uma parte da psique exclusivamente dedicada a ele. Vivía alerta, desviava, fugia. Enfrentá-las? Nunca.
Minhas emoções, como ainda hoje, eram irracionais. Não pensei em fechar o ralo, nem em desligar o chuveiro, muito menos em me enxugar. A ideia de uma taturana presa à toalha era intolerável. A única saída era fugir.
Na sala, meu vizinho estava agachado, como sempre. A vida real e onírica se mesclavam.
— O que faz aqui? — Olha, venha ver. — Sem virar, acenou para que eu me aproximasse.
Havia no chão uma folha de papel. No centro, a mesma taturana. Meu vizinho, com um isqueiro, ateava fogo nas bordas. Quando o fogo a alcançou, ela se retorceu, enroscou-se, tornou-se um círculo chamuscado.
Agachei-me ao lado dele e assisti sua morte. Era um ritual nosso, queimar taturanas. Segredo comum. Não recordo a primeira vez, talvez pela idade tenra, cujas memórias só habitam os sonhos. O que meu corpo lembrava era o espanto inicial. Com o tempo, acostumei-me. Normalizei o sofrimento. Passei a gostar. Era como me vingar do medo que sentia.
***
O vizinho, cuja sombra parecia maior que seu corpo, exigiu que queimássemos mais uma. “Das grandes”, disse, com um sorriso torto que me gelou a espinha. Mas, desta vez, eu teria de acender. Ele queria que eu queimasse. Que eu fosse, enfim, cúmplice por completo. A ordem era clara e irrecusável.
Senti o estômago revirar. A pele do rosto ficou fria, úmida. Ansiedade e calafrios me percorreram como uma corrente de agulhas finas, e os dedos, estes traidores, já não respondiam. Cada mínimo movimento da taturana produzia em mim um tremor, um espasmo involuntário. Aquele ser grotesco e viscoso se arrastava com a lentidão de um presságio, e eu sabia, sabia que não havia saída. A tarefa exigia confiança, destreza e um coração insensível. Eu era um poço de hesitação. Titubeei. Falhei. E falharia de novo, se me fosse permitido.
O vizinho, sem alterar o tom, empurrava a criatura para o centro da folha com a frieza de um carrasco, como quem guia um condenado à fogueira. Eu recuava, tropeçava nas próprias pernas, como um animal acuado. Tentava, em vão, desaparecer no chão. Mais tentativas. Mais fracassos. Então, ele sugeriu álcool.
O cheiro adentrou minhas narinas como um soco. Áspero, invasivo, pareceu incendiar o interior da cabeça. E eu quase cedi ao impulso de fugir, de gritar. Mas não. Eu confiava no vizinho. Não por escolha, mas por medo. Um medo infantil e ancestral. Eu devia confiar, sob pena de consequências que ainda ecoavam em mim como sinos de um templo profano, narradas detalhadamente nas primeiras vezes, quando ainda ousava protestar.
Obedeci. Como se guiado por mãos invisíveis, aproximei o isqueiro. O fogo, traidor e faminto, se alastrou num segundo. As chamas engoliram a folha, lamberam os contornos, e por fim alcançaram a taturana. Ela se retorceu numa espiral enlouquecida, e antes que eu pudesse reagir, saltou, um salto que desafiava a lógica, direto sobre minha perna.
A dor veio como um trovão silencioso. Aguda, lancinante, rasgou a carne e se espalhou pelas entranhas. Gritei, ou quis gritar, mas apenas um gemido abafado escapou. Tentei me livrar. Em desespero, me sacudia, como se isso bastasse. A taturana, cruel, rastejava sobre minha coxa, deixando um rastro viscoso, uma linha avermelhada e gosmenta que parecia pulsar. Sacudi as pernas, bati com a mão. Outro erro. Uma dor nova, mais profunda, mais vil, percorreu meu braço e atingiu a base da nuca com a intensidade de um relâmpago interno.
A realidade se dissolvia. Os sons se tornaram abafados, a visão turva, como se eu afundasse em um lago lodoso. O desespero não era mais humano, era primitivo. Era medo puro, sem nome, sem forma. Um terror que me consumia por dentro, como se o próprio tempo tivesse parado para assistir minha ruína. Senti-me um objeto, um farrapo, entregue a forças que não compreendia. E, quando o corpo já não suportava mais, o mundo apagou. Fui tragado pelo breu, enfim.
***
Ainda dentro do sonho, despertei, não como se acorda de um descanso, mas como alguém que emerge de um afogamento. Os olhos, colados por crostas espessas de remela endurecida, resistiam a se abrir. O esforço de separá-los foi uma tortura breve, mas suficiente para trazer a consciência do corpo: ardia em febre. Cada movimento, mesmo o mais tênue, era acompanhado de uma dor surda que se alastrava pelas terminações nervosas como brasas enterradas sob a pele.
Sentia, com precisão quase cirúrgica, o sangue pulsando em direção às regiões feridas. Era como se pudesse ver, por dentro, o exército invisível de defesa correndo às pressas, como soldados em desespero, enfrentando um inimigo que não sabiam nomear. O veneno, silencioso, avançava, e a dor que ele trazia parecia menos física que espiritual. Não era apenas a pele ferida, eram as lembranças que latejavam, vivas, indomadas. As cicatrizes, ainda abertas, eram mais profundas que a carne. Nenhuma resposta imunológica, por mais robusta, jamais dera conta delas. Ali, repousavam, intocadas, intocáveis.
Tentei permanecer na cama, mas o peso da ansiedade, somado ao de um medo sem nome, era insuportável. O lençol parecia me sufocar, como se se tornasse uma mortalha. Tentei descer, com o cuidado dos moribundos. Apoiei o pé direito no chão, e ele fraquejou como um galho seco. Um jorro de dor, de dentro para fora, percorreu a perna como uma fisgada. Apoiei-me na parede e avancei, mancando, sem saber por quê, para onde, ou mesmo se valia a pena ir. O instinto, esse carrasco, guiava os passos.
A penumbra dominava a cabana, e dela apenas filtrava-se a luz mortiça de um dia cinzento, neve e névoa. As sombras tomavam os cantos, e tudo parecia pulsar, como se a casa respirasse. Foi nesse instante que notei: as paredes... as paredes ondulavam. Não como o fazem por ilusão de ótica ou febre alta, mas como se tivessem vida. Moveu-se o teto, moveram-se os sofás, e eu, atônito, cego de pavor, atribuí aquilo à febre, à minha já conhecida fobia, ou à perturbação que se alojara no fundo da mente. Respirei fundo, fechei os olhos, quis crer que era alucinação.
Mas não.
Algo mais me chamava, um chamado interior, quase uma convocação. Era preciso saber, ou fugir. Tentei focar a visão. E à medida que meus olhos se ajustavam, a verdade se desenhava, horrenda, irreversível.
A cabana estava viva.
Coberta.
Não de musgo, não de limo ou insetos quaisquer, mas sim de taturanas. Milhares, talvez milhões. Rastejavam com seus corpos verde-musgo, pelos fluorescentes vibrando, como se zombassem de minha sanidade. Enroscavam-se umas nas outras, numa dança macabra, um frenesi. As paredes pulsavam por causa delas. O teto... o teto parecia prestes a desabar sob o peso daqueles corpos nojentos, viscosos, implacáveis.
No centro da sala, sobre um dos sofás, formava-se uma massa disforme, pulsante, quase viva. Um monte fervilhante de taturanas que se engalfinhavam em luta violenta, frenética, emitindo ruídos agudos, um grunhido lancinante, que penetrava nos ouvidos como agulhas invisíveis. Era como hienas ao redor de carniça, cegas de fome, de raiva, de ódio ancestral.
O estômago, traidor, se revoltou. Um jato de vômito, amargo, ácido, de um amarelo esverdeado, irrompeu sem aviso e caiu direto sobre aquela massa fervente. As taturanas se dispersaram, ainda que por instantes. E ali, entre elas, jazia... o corpo do vizinho.
Paralisado. Nem fuga, nem ataque. Apenas o terror absoluto. Os músculos, antes tensos, se tornaram de chumbo. Os olhos não se mexiam, a boca entreaberta. Nada. Estava encurralado. Não havia escapatória. Logo seria envolvido, coberto, sufocado por aquela maré de agulhas verdes que pulsavam desejo de morte. Uma morte lenta, em dor dilacerante, enquanto aqueles corpos rastejantes me absorveriam como haviam feito com ele.
O vizinho, ou o que restava dele, jazia disforme. A pele violácea, rasgada, os olhos vazios. Da boca entreaberta, emergia uma taturana, triunfante, como um troféu, trazendo entre os pelos retorcidos, restos de matéria encefálica. O cérebro era o prêmio.
E ali, naquela cena de horror, algo em mim quebrou. Nunca lera, jamais ouvira, que taturanas fossem carnívoras. Sabia-as herbívoras, inofensivas, alheias à carne humana. Mas ali, elas celebravam vingança. Ali, o algoz estava morto, e as vítimas, enfim, dançavam sobre o túmulo.
A epifania se desenhou na mente em choque. Sempre temi as taturanas, sempre repugnei seus corpos, sempre herdei esse medo, talvez de ancestrais que, como eu, fugiam do que não compreendiam. Mas elas, como eu, também tinham medo. E juntas, unidas pelo medo comum, revidaram. Eu não era o alvo. Jamais fora. Era vítima, não predador.
O medo dissolveu-se. Diante do horror, veio a verdade. Já não temia. A narrativa era minha. E, pela primeira vez, empaticamente, compreendi as taturanas. Sorri. O monstro, não elas, mas ele, e fora destruído.
***
Passei a existência fugindo de espectros e ameaças inventadas, erguendo fortalezas de segurança, sólidas como muralhas, que, no fundo, não passavam de trincheiras cavadas pelo medo. Fui ludibriado, moldado pelas mãos insidiosas de meus algozes, que me ensinaram a contar histórias com os olhos deles, sempre heróis de si mesmos, enquanto me incitavam a ver vilões onde havia vítimas, e a sufocar minha fúria, canalizando-a para alvos escolhidos por eles. No entanto, vilões eram eles, e, àquela altura, tudo o que lhes devia era desprezo.
Naquele instante de revelação, que mais parecia um rasgo na tapeçaria da realidade, assumi as rédeas do que me restava. Meus sentidos despertaram, meu corpo respondeu. Fui ao quarto. As taturanas, pendendo em massa do teto e das paredes, se precipitavam em queda lenta e grotesca, um dilúvio de medos outrora inomináveis. Eu precisava de um refúgio. Vasculhei o guarda-roupa. Ali, no fundo de uma gaveta, como que esquecida por um deus benevolente, encontrei uma manta vermelha, espessa, densa como o silêncio de anos. Cobri-me por inteiro, encerrando-me num casulo contra agulhas e assombrações.
Dirigi-me à porta. No caminho, detive-me diante de uma janela. Lá fora, as criaturas arqueadas de pele rugosa ainda vagavam, a passos vagos, indiferentes. Estranhamente, a antiga certeza de que me caçavam se dissipara, como neblina ao sol. Seriam, de fato, monstros? Ou teria sido eu quem lhes pintara a monstruosidade no semblante? A lente da percepção ajustava-se; os contornos do preconceito se dissolviam.
Abri a porta e saí. Lancei longe a manta, último relicário da prisão que construíra. Vermelho sobre branco: sangue simbólico sobre a pureza da neve. Sobre ela, moveram-se pontos esverdeados, mas agora nada evocavam. Caminhei, firme e sereno, pisando naquele vasto branco. O frio, antes temido, não me tocava. Os colossos disformes não se moveram. Não buscavam por mim; jamais haviam buscado. Monstros só existem na clausura do medo. Na liberdade, revelam-se por quem são: crianças, tal como eu, perdidas num mundo vasto, à procura de sentido.
************************************************************************************
Se você chegou até aqui, após a leitura desse conto sobre infância e medo, muito obrigado pela companhia.Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
Se este texto te interessou, aqui no blog você encontra outros escritos meus, entre resenhas, contos e reflexões.
No Instagram, você me encontra como @pedrosucupiraa.
No Skoob, como Pedro Sucupira, onde compartilho os livros que li, estou lendo e pretendo ler.
E no Lattes, é possível acessar minha produção acadêmica, incluindo artigos científicos, capítulos e livros publicados.
Se quiser conversar, trocar ideias, críticas, sugestões ou experiências, sinta-se à vontade para me escrever: pdrohfs@gmail.com.
Comments