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O Coletivo — uma narrativa densa, filosófica e incendiária sobre trabalho, revolução operária e colapso do sistema.

O capitalismo carrega em si o germe de sua própria destruição. — Karl Marx
Vivemos sob o capitalismo. Seu poder parece inescapável — mas então, também o poder dos reis parecia. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. — Ursula K. Le Guin
O capitalismo sobreviverá enquanto for capaz de manter o indivíduo distraído com falsas necessidades. — Herbert Marcuse.

 

Imagem em formato paisagem mostrando um cenário sombrio e desolado: um canteiro de obras abandonado com estruturas metálicas enferrujadas, pedaços de concreto quebrado e uma atmosfera enevoada. Ao fundo, sombras humanas vagas sugerem figuras que se movem silenciosamente, reforçando o clima de tensão e mistério. A composição transmite a sensação de abandono, opressão e inquietude, refletindo os elementos psicológicos e sociais do conto "O Coletivo".

Na cidade de Funilândia, André e Antônio, sentados no meio-fio em frente à obra da construtora Lemann, na qual trabalhavam como pedreiros, comiam sua comida acondicionada em marmita de alumínio, esquentada num pequeno fogareiro improvisado com lata e álcool.

André desabafa entre uma colherada e outra:

— Tô tão cansado, Antônio. Trabalho desde os sete anos e, hoje, com quase cinquenta, nunca parei. O trabalho só aumentou... e o dinheiro só encolheu. Sou um dos melhores pedreiros dessa cidade; já levantei parede em todas as casas ricas dessas bandas. E depois de tanto erguer o luxo dos outros, o que me resta? Continuar carregando saco até os setenta, pra depois me aposentar com um salário-mínimo? Essa vida é ingrata demais. Nunca estudei. Achava que aos cinquenta estaria livre, que ia estudar, fazer aquele curso pra velho tirar diploma, igual a Nazaré, minha mulher, fez.

Antônio responde, com a resignação de quem mastiga não só arroz com feijão, mas também a própria esperança:

— É, meu caro. Eu te entendo. Mesmo sendo mais novo, sei que vida melhor não vem. Ontem, depois de vinte anos de batente, comprei meu primeiro celular sem botão. Um barato. Foi uma das poucas alegrias que tive desde que saí de casa. Agora vejo vídeo, fiz conta naquele tal de Facebook pra conversar com os parentes e minha mãezinha, lá no interior. Pelo visto, a Internet chegou por lá também. Difícil entender esse mundo. Mamãe ainda lava roupa no ribeirão e faz xixi na fossa, mas o que priorizaram foi a tal da Internet. Dizem que foi o Seu Silvio Abravanel, aquele fazendeiro, que trouxe antena e telefone pra modernizar a lavoura. Minha irmã disse que até as vacas têm chip agora. Se uma se perde naquela imensidão, logo acham — disse Antônio, boca cheia, mastigando entre uma frase e outra, tentando espantar as lágrimas de tristeza com palavras. — Sempre sonhei em dar vida boa pra minha mãe e meus irmãos. Mas nada mudou. A vida segue... e é cada um por si.

— É, Antônio, a necessidade ensina a lebre a correr. Seus irmãos vão se dar bem. Fique em paz. Suas atitudes são seu maior legado — respondeu André, com tom de consolo. — Minha avó contava pra gente umas histórias da família Abravanel. Ela foi ama de leite dos filhos do Seu Silvio. Chegou a amamentar as filhas do patrão — suspirou, fez uma pausa, comeu, mastigou, engoliu e retomou a fala. — Esses dias fui a uma reunião do sindicato e, desde então, tô pensativo. Lá, um senhor preto, já bem curvado de velho, mostrou um vídeo sobre essa tal de desigualdade social e meritocracia — André fez outra pausa para mais uma colherada, engoliu e continuou: — Pelo que entendi, essa história de que trabalhando duro a gente melhora de vida é ilusão. Mentira criada pelos ricos pra manter a engrenagem girando. Você sabia que a fome mundial, que tanto tentam combater, foi invenção deles mesmos? Esse velho disse que a Inglaterra, lá na Revolução Industrial, criou a fome pra forçar o povo a trabalhar. Porque, se todo mundo tiver comida... quem vai querer bater ponto?

— Como assim, André? Me conta mais disso? Também tô cansado de carregar tijolo pra rico e não sair do lugar.

— Então, Antônio... eles dizem que, se a gente se esforçar, um dia vai ser igual a eles. Dizem que começaram do nada, romantizam tudo... mas é mentira. Lembrei do Seu Silvio. Dizem que ele era camelô antes de ser fazendeiro, que venceu na vida. Mas ninguém fica tão rico só com suor. Já trabalhei muito mais do que ele, e não tenho nem um por cento do que ele tem. A verdade é que ele sempre teve ajuda. Minha avó dizia que os pais dele vieram do estrangeiro, comerciantes da Turquia, judeus. E você sabe como esses judeus se ajudam. Igualzinho àquele povo da maçonaria. Tem rede, tem apoio. Ele teve tudo. Tudo que a gente não teve.

Antônio largou a marmita no chão. Os olhos arregalados, como quem vê pela primeira vez o mundo sem as lentes da esperança. Falou, como se tropeçasse nas palavras:

— Será que isso é verdade, André?

No fundo, sabia que sim. Sua própria vida era a prova.

— Eu acredito que sim, Antônio. Olha pra gente. Alguém trabalha mais do que nós? — André apontou para o prédio de treze andares, em fase final, logo atrás deles. — E mesmo assim, não temos nada. Alguns ali até passam fome. Lembra do João, que tivemos que ajudar com cesta básica? Do Fernando, coitado, que se atirou da ponte porque não aguentava mais ver os filhos chorando de fome? Da Dona Germina, que morreu porque não tinha dinheiro pra comprar o remédio da diabetes? Mulher valente. Já foi até servente de pedreiro. Aceitava tudo, sem medo. — André exalou um suspiro de cansaço, jogou a cabeça pra trás e encarou o céu. — E o pior: nunca conheci um rico que trabalhasse mais do que nós. Eu tô ficando revoltado. Doente da cabeça com essa injustiça. Ver gente nossa morrendo pra eles viverem no luxo... e não saber o que fazer com isso tudo me dá enjoo.

Ainda olhando o céu, André colocou a mão direita no peito esquerdo, apertou com força, e lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto:

— É uma tristeza misturada com revolta. Às vezes me falta o ar. Me sinto sufocado. Eu não quero mais trabalhar pra essa gente rica. Como disse o preto velho no sindicato... a gente precisa acabar com esse padrão.

As mãos calejadas, os músculos quase esqueléticos e a pele preta ressecada por anos de exposição à poeira e ao cimento corroboravam a realidade vivida. No corpo carregavam as marcas da injustiça e da desigualdade. Viver na miséria era alimentar-se de esperança. Mas para tudo havia um limite. A esperança individual morrera há décadas. Agora, com o último suspiro, era hora de entregar-se à esperança coletiva. Apoiar-se no próximo, juntando cacos de esperança, com migalhas de otimismo, e insurgir-se contra o cárcere que domestica existências.

***

Nos dias que se seguiram, André não apareceu para o serviço. Os companheiros, acostumados com sua pontualidade quase litúrgica, estranharam o silêncio. Antônio, inquieto, reuniu alguns dos rapazes da obra e foram até a casa do amigo. A cena que encontraram não se apagaria de suas retinas até o fim de seus dias: uma lona preta cobrindo o portão, cadeiras enfileiradas no quintal, coroas de flores com fitas douradas e, ao fundo, o caixão. O velório já estava em curso.

André se jogara da ponte.

No bolso da camisa manchada de concreto e suor seco, encontraram a carta. Sem envelope, dobrada em quatro. Uma caligrafia trêmula, mas decidida, como se o punho soubesse que era o último ato antes do abismo. As palavras, desde então, ecoam, eternamente, pelas ruas de Funilândia:

“Trabalhar é ilusão. Meritocracia é ilusão. Somente os ricos ficam mais ricos. Prefiro morrer a continuar ajudando essa gente rica a enriquecer. Precisamos romper com esse padrão. Convido todos à revolução. Convido todos a fazerem o mesmo. Sei que minha morte não será em vão. Assinado: André Freire. 20 de novembro de 2022.”

A carta se espalhou feito fogo em palha seca. Foi lida na praça, reproduzida em panfletos, recitada em rodas de conversa nas padarias, nos pontos de ônibus, nos canteiros de obra, nas fábricas, nas salas de aula das poucas escolas que ainda funcionavam. Era lida em voz alta, em tom grave, com olhos marejados, como quem recita uma oração profana. Um novo evangelho, escrito em cal entre as rachaduras da cidade.

E assim, no dia 27 de novembro de 2022, exatamente uma semana após o enterro, os trabalhadores da obra da construtora Lemann, onde André dera seus últimos dias de vida, com exceção de Antônio e dos filhos órfãos de Dona Germina, caminharam até a ponte. Não deixaram cartas. Não avisaram às famílias. Foram cinquenta e três corpos, um atrás do outro, saltando em silêncio, como se o silêncio fosse a única linguagem possível diante da injustiça.

A cidade estremeceu. A ponte, interditada. A obra, paralisada — e jamais retomada.

Daquele dia em diante, a palavra Lemann ganhou um novo significado. Para os moradores de Funilândia e arredores, era maldição, era epitáfio, era sentença. “Quem com Lemann trabalha, a loucura lhe cai bem e a ambição lhe enterra”, dizia o novo ditado que brotou espontâneo da boca do povo, e como toda sabedoria popular, carregava a precisão de um veredito milenar.

A cidade entrou em luto. Os sinos da igreja dobraram por dias, mas o que se via nos olhos dos moradores não era apenas tristeza. Havia também fúria. Havia despertar.

Religiosos benziam a boca sempre que ouviam o nome Lemann. As crianças, instruídas pelas mães, cuspiam no chão como forma de defesa espiritual. O nome foi apagado das fachadas, das pastas escolares, das fichas médicas, como se deletá-lo fosse uma forma de exorcismo.

A empresa tentou resistir. Ofereceu salários maiores, benefícios, parcerias com escolas, promessas. Mas não adiantou. Nenhum homem, nenhuma mulher de Funilândia quiseram mais trabalhar com a morte. E o que era impensável aconteceu: os Lemann fecharam as portas. Os lucros minguaram. Procuraram mão de obra em outros cantos, longe dali, onde as vozes não alcançavam, onde o grito ainda era engolido pela fome. Funilândia, não mais.

Mas algo havia sido semeado. Um vislumbre de poder coletivo. Um lampejo de autonomia. Pela primeira vez, os moradores entenderam que unidos eram muralha, e não andaime. Que um só corpo é frágil, mas cem corpos juntos são terremoto.

E foi assim que nasceu a nova ordem. Toda empresa que pretendia se instalar na região passava por sabatina. O sindicato dos pedreiros virou sede do povo. Reuniões comunitárias aos sábados. Cafés fortes, discursos inflamados, decisões democráticas. Se alguma empresa ousasse descumprir os acordos, era boicotada por todos os lados. Trabalhadores largavam os postos em uníssono, como um organismo que rejeita um órgão transplantado. E a empresa apodrecia. Diversas sucumbiram.

Apenas as cooperativas prosperaram. Autogestão. Decisão horizontal. Produção consciente. Nascia uma nova Funilândia. Uma cidade onde o cimento não escorria junto com o suor dos pobres. Aonde o lucro não vinha da exaustão alheia. Uma cidade que, lentamente, se descolava das garras do capital e caminhava, ainda trêmula, mas decidida, em direção à sua própria dignidade.

E mesmo assim, mesmo com tudo isso... às vezes, à noite, quando o vento sopra do lado da ponte, ouve-se um sussurro. Baixo. Quase inaudível.

“Convido todos à revolução.”

Alguns juram que é o vento.

Outros, que é o próprio André.

Mas ninguém ousa ignorar.

***

Lemann era, no ano de 2022, mais do que uma construtora. Era um império. Uma entidade tentacular que, sob o disfarce de cimento e inovação, estendia seus braços invisíveis por ministérios, prefeituras, igrejas e emissoras de televisão. Seus prédios tocavam os céus e suas raízes alimentavam os porões da república. Após a hecatombe ética dos concorrentes — condenados, é verdade, por crimes que todos cometem, mas nem todos pagam —, a família Lemann vislumbrou no caos a oportunidade para o domínio absoluto. Cresceram como praga em solo fértil. E fertilidade, diga-se, é o que não falta em um país onde o sofrimento alheio é abundante e a impunidade floresce como trepadeira.

Investiram em tudo: rodovias, ferrovias, tecnologia de ponta, cidades inteligentes e, sobretudo, naquilo que realmente importa, as almas. Compraram pastores, padres e profetas. Bancaram missões, ergueram templos e financiaram campanhas. Nas coxias do Congresso Nacional, fez-se luz: nascia a bancada Lemann, e com ela, um novo evangelho do lucro, em que o dízimo era pago com suor operário e a salvação vinha em forma de dividendos. O slogan era simples, quase bíblico: “Trabalhe e prosperará”. Mas prosperava quem? — isso jamais se dizia em voz alta.

Enquanto isso, nas obras e lavouras que sustentavam esse milagre corporativo, estouravam denúncias de trabalho análogo à escravidão. Jornadas de dezoito horas. Quartos insalubres. Diarreias crônicas por água contaminada. Corpos dilacerados por andaimes mal fixados. Vidas silenciadas por concreto e silêncio. A mídia, toda ela já adquirida em suaves parcelas e promessas de publicidade perpétua, fazia seu papel: ocultava, relativizava, rebatizava os horrores com nomes palatáveis. Trabalho “intensivo”. “Compromisso com a produtividade”. “Desafio logístico”. Nada havia sido feito. Nada seria feito. Até o dia em que André Freire, operário anônimo, corpo curvado pelo cimento e alma acesa pelo incômodo, decidiu se lançar da ponte.

A princípio, tentaram abafar. A carta não foi lida. A imprensa se calou. Chamaram de surto. De problema psicológico. A estatística acomodou mais um número e tudo seguiria, se não fosse pelo dia 27 de novembro. Quando cinquenta e três outros fizeram o mesmo salto, em nome da mesma dor, com os mesmos calos nas mãos. A morte coletiva, esse espetáculo que jamais passa despercebido, rompeu as barreiras do controle. O Coletivo, como logo ficou conhecido, deixou de ser apenas um nome. Tornou-se força. Tornou-se liturgia. Tornou-se ameaça.

E pela primeira vez em décadas, os Lemann não conseguiram controlar a narrativa.

O país inteiro soube. E pela primeira vez, soube por fora das telas, dos feeds, dos boletins pagos. A notícia corria por vozes. Boca a ouvido. Boca a boca. Como o Evangelho primitivo, espalhava-se sem mediação. Em menos de um mês, em cada rua, praça e campo de futebol de terra batida, alguém mencionava André Freire. E não mais como vítima, mas como mártir. Chamavam-no de visionário. De despertador de consciências. E mais: de profeta.

Os Lemann tentaram reagir. O CEO — um sujeito tingido de um bronze alaranjado digno de uma estátua envernizada, coroado por cabelos loiros artificiais que pareciam ter sido desbotados pelo sol ou por uma vaidade excessiva, com voz de documentário e sobrancelhas treinadas para a expressão de empatia — apareceu em rede nacional. Prometeu políticas de saúde mental, cursos de mindfulness para operários e um investimento simbólico de cem mil reais (de cartolina) para um hospital psiquiátrico, hospital esse pertencente ao próprio grupo, claro. O cheque sorriu em fotos ao lado de crianças doentes. As câmeras filmaram lágrimas e palmas. Parecia resolvido.

Mas não estava.

Porque o que eles jamais entenderam é que há uma diferença entre matar o corpo e matar a ideia. E a ideia de André era simples, violenta e viral: o trabalho, tal como o conhecemos, é um instrumento de dominação. Era essa a semente. E ela brotava.

A cidade de Funilândia foi apenas o início. Em poucos meses, novas “Funilândias” surgiram. Primeiro no interior. Depois, nas periferias urbanas. Por fim, até em bairros onde a miséria andava disfarçada de classe média. O nome Lemann passou a ser pronunciado com temor. Os crentes benziam-se. Os ateus evitavam repeti-lo à noite. Havia algo de maldito naquele sobrenome. Algo de bíblico, de apocalíptico. Chamavam-nos de os Anjos da Morte. De os faraós modernos. De os senhores do abatedouro.

A fortuna da família não minguou de imediato, mas começou a sangrar lentamente. Primeiro os boicotes. Depois os bloqueios judiciais. Em seguida, a fuga dos investidores mais cautelosos. Alguns diretores foram agredidos em aeroportos. Um deles, sequestrado. O próprio patriarca, agora refugiado em Genebra, cercado de seguranças suíços e vinhos centenários, já não dormia sem ajuda de sedativos.

Mas o mais cruel para os Lemann não foi a perda de capital.

Foi a perda do controle.

A constatação de que um único operário, com a espinha partida e o espírito aceso, havia iniciado um incêndio para o qual não existia protocolo. Que seu império, construído sobre a submissão, agora balançava ao som de vozes que antes não ousavam levantar.

E mesmo assim, como toda tragédia nacional, havia ainda os que defendiam os Lemann. Alguns por medo. Outros por hábito. Muitos por conveniência. Diziam que o Coletivo era exagerado. Que André era um radical. Que “nem todo rico é assim”. Mas ninguém mais dizia com convicção. Era uma defesa murmurada, como quem tenta justificar o latido de um cão que já mordeu três vezes.

O país, em silêncio, observava.

E os Lemann, acuados em seus bunkers de concreto e champanhe, começaram a temer não apenas o colapso econômico.

Mas o colapso simbólico.

Pois sabiam, como todo império em ruínas descobre tarde demais, que não há fortuna que resista ao desprezo coletivo.

***

Um ano se passou.

A poeira do escândalo havia assentado — ao menos na mente dos Lemann. Na mesa de mármore branco das reuniões do conselho, entre cálices de cristal e risos abafados, ninguém mais pronunciava o nome de André Freire. Ele e os outros cinquenta e três? Mortos, sim, mas sobretudo mortos por incompetência, como constava no relatório interno: “ex-operários afetivamente instáveis, emocionalmente frágeis, profissionalmente descartáveis”. Nada que não se resolvesse com programas de compliance e manuais de boas práticas, governança e ESG. A vida, afinal, seguia. E o lucro também.

Enquanto os Lemann se deleitavam em jantares com estrelas Michelin, em iates nomeados em francês e férias nos Alpes suíços, aqui, no Brasil, essa terra condenada a servir, uma outra narrativa se erguia das cinzas. Uma narrativa subterrânea, suja de lama, suor e sangue. A narrativa do Coletivo.

O nome André Freire já não era só nome: era símbolo, era verbo, era verbo conjugado no presente. As palavras de sua carta, copiadas em cadernos de escola, pichadas em muros, declamadas em reuniões verdadeiramente democráticas. As crianças aprendiam a decorá-las antes do alfabeto. Seus versos, tão simples, tão duros, tornaram-se hinos: “Trabalhar é ilusão. Meritocracia é ilusão. Somente os ricos ficam mais ricos. Prefiro morrer...”. A morte, ali, não como fracasso, mas como libertação. Como último gesto de poder. Como grito de autonomia diante da máquina.

Por entre os subterrâneos da pobreza, túneis da miséria, o Coletivo crescia. Nos becos das favelas, nas escolas precárias, nas plantações de cana onde o sol castiga sem pena, nas fábricas ruidosas e mofadas, nos presídios onde os corpos apodrecem antes da alma, a ideia florescia. Porque a fome, essa mestra silenciosa, ensina rápido. E o desespero, esse químico divino, é o mais potente dos combustíveis.

No início, os ricos riram. “Modismo”, diziam. “Surto coletivo”. “Eles sempre foram assim: instáveis.” Mas no dia 20 de novembro de 2023, exatamente um ano após a queda de André, o país inteiro parou. E não foi por greve. Nem por protesto. Foi por silêncio. Um silêncio mortal.

Naquela manhã, 113 mil trabalhadores das empresas Lemann — operários, motoristas, serventes, jardineiros, copeiras, adolescentes aprendizes e velhos de bengala ainda na ativa — organizaram-se. Todos, sem exceção, em todas as filiais, canteiros, obras, escritórios e campos de produção espalhados pelo país. Um movimento orquestrado com a precisão de um exército e o fervor de um culto. Às 11h da manhã, em cada cidade, em cada ponte, viaduto, andaime ou torre, eles se lançaram.

Foi o maior suicídio coletivo da história da humanidade.

As imagens, gravadas por drones, por celulares, por câmeras de segurança, correram o mundo antes mesmo do meio-dia. Em algumas cidades, o salto foi acompanhado por cantos. Em outras, por silêncio absoluto. Muitos vestiam branco. Outros pintaram o corpo com lama, ou com tinta vermelha. Alguns deixaram cartas. Outros, apenas olhares. Mas o gesto era uníssono: morrer para deixar de servir.

Na sede dos Lemann, o alarme tocou. Não o alarme físico, mas o simbólico. Aquele que nem os muros blindados de Zurique conseguiram silenciar. Aquele que nenhum “cheque simbólico” resolveria. Pela primeira vez, a família Lemann não soube o que dizer. Não houve pronunciamento. Apenas o cancelamento de uma reunião com investidores em Davos. Um tropeço verbal de um herdeiro em uma entrevista na Bloomberg. Um sumiço temporário de redes sociais.

E, em seguida, o medo.

Pois o que antes era um caso isolado agora era padrão. O que antes era um sintoma agora era diagnóstico. Não estavam mais lidando com pobres descontentes. Estavam lidando com corpos em revolta. Com trabalhadores que descobriram que a única coisa que ainda podiam oferecer, e que os Lemann não podiam comprar, era a própria morte.

Mas o mais assustador não era a morte em si.

Era o que ela deixava: o vazio.

As empresas Lemann pararam. As construções cessaram. As entregas atrasaram. Os contratos foram rompidos. Investidores fugiram. As ações despencaram. Mas, mais do que isso, pararam os elevadores. As portarias. As cozinhas. Os gramados impecáveis dos condomínios de luxo começaram a crescer sem poda. Os filhos da elite passaram a comer pratos requentados. O lixo, sem coleta. O asfalto, sem manutenção. O ar-condicionado do shopping, sem reparo. E com tudo isso, veio o colapso. Não o apocalipse repentino, mas o lento apodrecimento de uma estrutura que dependia, integralmente, da submissão alheia.

A burguesia, assustada, buscou culpados. Chamaram os militares. Os juízes. Os padres. E todos, por razões distintas, se calaram. Pois sabiam que era inútil. Que estavam sozinhos. Que os corpos caídos haviam deixado uma cicatriz indelével no solo da história.

O nome Lemann tornou-se maldição.

As crianças o evitavam. Os adultos o sussurravam. Os mais velhos, em tom de aviso, diziam: “Cuidado com os olhos de Lemann. Eles ainda veem no escuro.” Outros afirmavam que os ricos começaram a enlouquecer. Que viam vultos. Que tinham pesadelos com operários de olhos em brasa. Que ouviam vozes no chuveiro. Que sonhavam com pontes. E acordavam aos gritos.

Mas ninguém ousava rir. A morte, ali, havia se tornado sagrada. E como toda religião de fundação trágica, exigia silêncio e reverência.

Assim, o país seguiu. Em ruínas, talvez. Mas com uma nova pergunta no ar: e se o trabalho, tal como o conhecemos, tiver sido apenas o delírio de um sistema que finalmente colapsou?

E André Freire?

Ninguém mais o via como mártir. Nem como herói. Nem mesmo como homem. André era agora como o fogo: impossível de tocar, mas possível de acender.

E como todo fogo, era só questão de tempo para que queimasse de novo.

***

Jorge Paulo Lemann estava sentado à cabeceira de uma mesa de nogueira negra polida, reluzente sob a luz artificial do salão oval no 42º andar de um dos edifícios mais caros de Nova Iorque. Em torno dele, os vinte e dois diretores-executivos de seu império, todos da mesma estirpe: ternos bem talhados, olhos inquietos de quem teme perder.

Era uma manhã como outra qualquer: croissants importados, suco de frutas que ninguém sabia o nome, e café filtrado por um aparelho japonês que custava mais do que o salário de um pedreiro brasileiro durante a vida inteira. A pauta era clara: a internacionalização definitiva do Grupo Lemann. Expandir. Infiltrar. Colonizar. Converter a pobreza em lucro, onde quer que ela estivesse.

O celular vibrou. A voz da secretária, sempre sóbria, sempre precisa, parecia hesitar.

— Senhor Lemann, desculpe incomodar. Aconselho que ligue a televisão no canal 360. Algo... aconteceu no Brasil.

Ele franziu a testa. Respirou fundo. Apertou o controle remoto com dedos ossudos.

— Com licença, senhores. Parece que houve um acontecimento em nosso velho canteiro de obras tropical.

A tela acendeu. E então, o silêncio. Não aquele silêncio comum das salas de reunião, mas o silêncio que antecede o colapso. A repórter da Fox News, Rebecca Brown, lutava para manter o tom neutro, como se a imparcialidade pudesse, por um segundo, conter o horror.

— Ontem, por volta desse mesmo horário, aproximadamente 100 mil funcionários das empresas Lemann cometeram o que tem sido chamado de O Coletivo — o maior suicídio coletivo da história. Todos deixaram uma carta: “Convidamos os oprimidos à revolução. Que a morte nos liberte do jugo.” Seguimos aguardando maiores informações.

O rosto de Lemann perdeu cor. Sua mandíbula caiu levemente, mas não se desfez em palavras. Ao redor, os demais empresários arregalaram os olhos. O impacto foi simultâneo, como um sismo que rompe a terra sob seus sapatos italianos. Em um impulso coreografado, cada um puxou seu telefone e iniciou freneticamente ligações. Ninguém sabia para quem. Não havia manual para esse tipo de crise.

Ironicamente, estavam ali reunidos exatamente para debater o problema de imagem que impedia a expansão internacional das empresas Lemann. Rejeitados pela Europa. Rechaçados na África. Banidos em parte da América Latina. O Brasil, essa pátria prestativa, permanecia o último reduto, graças à bancada submissa que haviam comprado no Congresso Nacional. Mas agora, nem isso.

O solo fértil da miséria se tornara, de súbito, improdutivo. Os corpos que sustentavam as colunas do império haviam se jogado no abismo, e com eles, toda a engrenagem.

As fábricas cessaram. As construções pararam. As plantações murcharam. Os caminhões não carregavam. Os robôs não sabiam o que fazer. Os computadores congelaram em silêncio, esperando comandos que não vinham. As sedes ficaram vazias. E então, os armazéns foram saqueados. As centrais elétricas queimadas. Os silos incendiados. Uma terra devastada por mãos que antes apenas carregavam cimento, agora operavam destruição.

Era o retorno à barbárie? Ou a inauguração de uma nova civilização?

Em uma semana, o Brasil, sem os trabalhadores das empresas Lemann, parecia um organismo que perdera o fígado: intoxicado, confuso, à beira de falência sistêmica.

E os Lemann? Restava-lhes o que nunca haviam realmente possuído: o capital líquido. Mas esse evaporou. Pois ao contrário do que se ensina nas colunas de economia, bilionários não nadam em dinheiro — nadam em ativos. Empresas, ações, prédios, terras. E quando tudo isso vira fumaça, o saldo bancário é apenas uma lembrança. O patrimônio virou pó. O império, ruína. A falência foi protocolada sem alarde, como quem pede desculpas por ter exagerado na ganância.

***

Nova Iorque, três meses depois.

Jorge Paulo Lemann caminhava pelas ruas do Queens como um homem qualquer. Não havia mais secretária. Não havia motorista. Não havia nem nome. Seu rosto, antes estampado nas revistas Forbes, agora era apenas mais um entre tantos rostos sem passado. Seus sapatos, que um dia brilharam como o ouro, estavam sujos de neve e lama. O relógio, um Patek Philippe, fora vendido. O terno, penhorado.

A cidade que um dia o recebeu como magnata agora o ignorava como sombra. Os restaurantes não o atendiam. As pessoas não o reconheciam. E ele, num gesto quase infantil, ainda levava no bolso um cartão de visita enrugado com seu nome impresso em letras douradas, como se isso pudesse provar que um dia existiu.

Certa manhã, sentado em um banco de praça, um homem, magro e sujo se aproximou.

— Bom dia, senhor. Será que poderia contribuir com uma moeda para que eu possa almoçar?

Lemann, com a lentidão dos que perderam tudo, procurou nos bolsos. Achou apenas um botão solto e um recibo de táxi amarelado. Estendeu-os com culpa.

— Desculpe. Também estou... em transição.

O homem o encarou por um segundo. Sorriu, não de escárnio, mas de compreensão.

— Somos todos, senhor. Somos todos.

E partiu.

Lemann ficou ali. Sozinho. Com a estranha sensação de que aquele homem, faminto, tinha mais dignidade do que ele jamais tivera.

***

No Brasil, erguiam-se agora pequenas comunidades autogeridas, como se flores brotassem dos escombros do sistema. Não havia utopia, havia tentativa. As escolas ensinavam filosofia antes da matemática. Os sindicatos eram assembleias populares. As crianças liam André Freire ao lado de Paulo Freire. O trabalho não era mais obrigação, mas escolha. E a escolha, por mais difícil que fosse, era compartilhada.

Ninguém sabia se daria certo.

Mas todos sabiam que o que havia antes já não servia.

Porque às vezes, para que algo floresça, é preciso primeiro que tudo apodreça.

E assim terminou Jorge Paulo Lemann.

Ou começou, talvez, o mundo sem ele.

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Se você chegou até aqui, após a leitura dessa revolução operária, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.

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