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A Burca – Conto sobre desejo, identidade e transgressão

Atualizado: 25 de mai.


Duas figuras cobertas por burcas pretas caminhando e sentadas em uma calçada urbana, com árvores e carros ao fundo. A cena transmite silêncio, introspecção e simbolismo cultural.

Desde que se entende por gente, Yasin Mohammad lembra-se de ter visto o rosto da mãe apenas uma vez, um acidente que lhe rendeu um severo sermão do pai.


Nunca compreendeu como sua mãe, e todas as mulheres que conhecia, enxergavam o mundo por meio de uma estreita faixa que deixava expostos somente os olhos. Algumas, além disso, precisavam ver através de uma tela. E se a mulher fosse míope? Conseguiria enxergar? Seria como viver como cega, mesmo possuindo a visão?


Para Yasin, a burca sempre foi uma vestimenta carregada de controvérsia. Na infância, ela lhe causava medo. Por não conseguir ver os pés de quem a usava, ele as enxergava como espectros fantasmagóricos, o que lhe provocava calafrios. Na adolescência, perdera o medo e aprendera a respeitar as tradições, mas a peça continuava a despertar em sua mente os mais diversos questionamentos, não fazia sentido sob vários aspectos. E hoje, na juventude, fazia ainda menos.


Entretanto, sempre há um entretanto para quem carrega no peito uma alma dividida, a burca possuía algo de sedutor, algo de elegante e misterioso, como um véu não apenas sobre o corpo, mas sobre a própria existência. Yasin, que nunca fora dado a paixões ordinárias, mantinha viva, em algum recanto da memória, a lembrança da primeira vez que tocara uma burca, toque este que não fora acidental, como se pensaria de um menino inocente, mas deliberado, ardiloso, embora sob a desculpa da febre e do tédio.


Na ocasião, estava ele confinado ao leito, vítima de uma gripe, enquanto sua família saía para assistir a uma ópera ocidental, devidamente aprovada pelo Talibã, que, como todo censor, entendia muito de arte. Ficou em casa sob a tutela negligente de Aisha, a governanta, que, diga-se sem espanto, nunca se destacara pela competência maternal. Aisha preferia comandar outros empregados, talvez por ambição, talvez por preguiça, ou simplesmente por vocação para a tirania doméstica.


Ao despertar de um sono febril, Yasin encontrou-se só. A solidão, que a muitos angustia, a ele parecia uma dádiva. Caminhou, então, até o quarto dos pais, onde repousavam sobre a cama diversas burcas, todas em tons sombrios, de tecidos variados, como se fossem silhuetas de uma procissão muda. Foi quando cometeu o que chamaria, em sua posterioridade, de o primeiro pecado estético: vestiu uma burca. Chamou por Aisha, certificou-se do silêncio e, em seguida, entregou-se ao desfile solitário. Vestia, trocava, rodopiava, como se fosse, ele mesmo, a encarnação de um desejo que não sabia nomear. E foi ali, no toque frio e sedoso do tecido, que nasceu sua fascinação por aquela peça controversa, ao mesmo tempo prisão e liberdade.


As suas preferidas, sim, preferidas, pois o hábito tornara-se clandestino e recorrente, eram as burcas de ocasião, feitas de seda preta com bordados dourados nas extremidades, que cintilavam sob a luz como promessas não cumpridas. Havia também as de musseline, adornadas com ramos de gilbardeira bordados em alto relevo, tão refinadas que pareciam carregar, nos fios, o segredo de um mundo que se recusava a ser visto.


No seu vigésimo terceiro Ramadã, já homem feito, ao menos perante os olhos da lei e do pai, Yasin guardava em segredo esse gosto, ou essa transgressão, como queiram os moralistas. Entre as obrigações familiares, os estudos religiosos e universitários, e as infindáveis lições de negócios com o pai, que via em tudo cifras e castigos, ele encontrava momentos de escapatória, de subversão discreta. Furtava, não sem perícia, uma ou duas burcas do vasto acervo materno. O número era tal que a ausência de uma não seria notada, ou ao menos assim imaginava, no sossego da consciência.


Vestido com sua fantasia de seda, Yasin passeava pelo mercado e por outros recantos onde mulheres circulavam. Nunca fora reconhecido. O mundo visto pela estreita fenda de uma burca era outro, mais denso, mais íntimo. Havia ali, sob o véu, uma espécie de prazer, não apenas visual, mas existencial. Alegrava-se por ser visto como uma mulher, ao passo que apenas ele conhecia a verdade oculta. E, como todo indivíduo que se aventura nos domínios do interdito, questionava-se: quantos outros, como ele, estariam ocultos sob véus? Quantos mistérios se escondiam em cada burca?


A liberdade plena, porém, só se dava quando os pais partiam para Meca. Era então que Yasin aguardava, com uma ansiedade quase infantil, o momento em que toda a família acompanharia o irmão mais novo em sua primeira peregrinação. Sendo o primogênito, caberia a ele a administração da casa, cargo que exercia com o zelo de quem espera a primeira oportunidade para o desatino.


E assim sucedeu. Quando menos esperava, lá estavam Yasin e Aisha despedindo-se dos viajantes. Recebeu bênçãos, recomendações, olhares austeros. Beijou a mão direita do pai, a esquerda da mãe, como manda a tradição, e viu-se enfim livre.


Ao cair da noite, com os empregados recolhidos e o silêncio como aliado, Yasin dirigiu-se ao quarto da mãe. Lá, escolheu a burca predileta, seda preta com bordados dourados, usada por ela no casamento. O perfume de tecido novo ainda pairava, como se o tempo não lhe tocasse.


Nu, Yasin vestiu a burca.


Queria sentir o tecido frio e leve em toda a pele, como se o vestuário fosse uma segunda epiderme, uma carapaça de prazer.


Diante do espelho, desfilava. Observava-se, admirava-se, narciso, porém velado. Foi então que percebeu, à porta, um empregado que o encarava. Parado, balde e vassoura em mãos, o jovem trazia no rosto o espanto e o medo. Quantos empregados o pai contratava! Era impossível distinguir os novos dos antigos.


Ambos permaneceram imóveis, Yasin, de surpresa; o rapaz, de pavor. Em seguida, o empregado caiu de joelhos, em súplica muda.


E ali, naquele gesto de temor e submissão, Yasin entendeu tudo. Ele não fora reconhecido. Era, para o rapaz, a esposa do patrão, a senhora da casa, uma mulher. Sob o véu, não havia Yasin, havia apenas uma silhueta de autoridade.


E aqui, prezado leitor, a história toma rumos que talvez pareçam, à mente recatada, incomuns, mas, convenhamos, o que há de mais humano do que a confusão entre identidade e desejo?


Yasin aproximou-se do rapaz com a altivez que aprendera ao longo dos anos, não com a mãe, pois esta lhe fora sempre um enigma velado, mas com as mulheres da casa, donas de seus silêncios e de suas manhas. Tocou o rosto do jovem com a ponta dos dedos, num gesto que se pretendia feminino, ou ao menos delicado. Sentia, naquele momento, um misto de poder e vulnerabilidade: era senhora e, ao mesmo tempo, intrusa.


Estava vestido com uma burca de valor inestimável e, portanto, inatingível, ao menos na percepção daquele empregado que, ajoelhado e de olhos baixos, via ali não um homem em trajes proibidos, mas a esposa do patrão. Sabia-se, naquela casa, o destino dos que desagradassem a figura paterna de Yasin.


Mas o medo é uma força que se dobra facilmente à surpresa. E o que surpreendeu Yasin foi a própria coragem, ou talvez o ímpeto, que o fez levar a mão ao rosto do rapaz, secar-lhe as lágrimas e, num sussurro, ordená-lo ao silêncio: “Tudo ficará bem. Acalme-se.”


Ora, não há no mundo ordem mais ineficaz do que mandar que alguém se acalme, mas há quem, na vertigem do pavor, aceite qualquer palavra como conforto. E o rapaz aceitou. Respirou fundo, sentiu o toque leve nas costas, o afago circular, e, pouco a pouco, a tensão cedeu espaço a uma estranha quietude. Os dois, presos naquela dança silenciosa, eram prisioneiros de seus próprios papéis: um, escravo do medo; o outro, escravo do desejo, ainda que este último se escondesse sob o manto da autoridade.


Yasin, agora dominado por uma energia que ele próprio não sabia nomear, e, se soubesse, talvez não ousasse, conduziu o jovem ao abraço, não de afeto, mas de domínio. Sentia-se não mais um homem vestido de mulher, mas um misto dos dois, que encontrava naquele instante um terreno virgem, não apenas na carne, mas na experiência.


Podia ouvir o som abafado de sua própria respiração sob o véu, sentir o calor subindo-lhe ao rosto, a mente rodopiando, como se estivesse fora do tempo e do espaço. Era ele mesmo? Era outro? Estaria sonhando? Ou, pergunta mais incômoda, teria finalmente acordado?


O rapaz, agora entregue ao momento, obedecia sem questionar, movido não apenas pelo medo, mas por uma espécie de fascínio que também não ousava nomear. Os corpos se moviam em sincronia, em uma coreografia incerta, como se cada gesto fosse tanto comando quanto súplica.


Mas deixemos os detalhes dessa cena ao silêncio que lhes é devido, ou, se preferir, leitor, à sua imaginação. O fato é que naquela noite Yasin Mohammad não apenas vestiu uma burca: vestiu-se de um outro ser, ou de si mesmo, enfim revelado. E ao desnudá-lo, não o fez aos olhos do rapaz, mas aos seus próprios.


Na manhã seguinte, Yasin levantou-se como quem regressa de uma terra longínqua. O corpo dolorido não pelo esforço físico, mas pela tensão que o dominara, como se cada músculo, ao experimentar a liberdade, pagasse com o peso de sua culpa. E que culpa! Daquelas que não gritam, não reclamam penitência imediata, mas se insinuam em gestos rotineiros, em olhares desviados e em silêncios prolongados à mesa.


Aisha, a governanta, o recebeu com sua habitual indiferença, que para Yasin era sempre um alívio. Se ao menos todos na casa fossem como ela, alheios, práticos, ocupados demais com as engrenagens da vida doméstica para notarem os pequenos desvios do jovem senhor. Não lhe fez perguntas; não lhe endereçou julgamentos. Apenas o serviu.


Mas o empregado... Ah, o empregado! Não podia mais ser ignorado. A lembrança do rapaz, ajoelhado, submisso e por fim cúmplice, atravessava-lhe os pensamentos como uma adaga de prata: bela, fina, certeira. Não sabia o nome do rapaz, talvez, numa dessas ironias da vida, jamais o soubesse. Mas os olhos dele, sim, os olhos, já o assombravam.


E não me venha, leitor, com perguntas que nem mesmo Yasin poderia responder. Foi amor? Foi luxúria? Foi sede de poder? O ser humano é criatura complexa demais para se prender a um único rótulo. E como dizia meu finado tio (homem de poucas virtudes, mas de raciocínio afiado): “A alma humana é um labirinto sem saída, e quem tenta mapear-lhe os caminhos, ou enlouquece ou escreve romances.”


Naquela tarde, ao passear pelo pátio interno da casa, Yasin sentiu-se observado. Não pelas câmeras de segurança, que certamente existiam, nem pelas criadas, que lhe respeitavam com distância. Era algo mais sutil, uma presença. Talvez fosse sua própria consciência, disfarçada de vigilante, ou talvez fosse o empregado. Queria encontrá-lo? Não sabia. Queria esquecê-lo? Menos ainda.


À noite, sozinho em seu quarto, experimentou novamente o toque do tecido sobre a pele, mas sem a excitação da véspera. O prazer fugira, como costumam fugir os prazeres clandestinos após seu primeiro apogeu. Restava-lhe apenas o silêncio, espesso e incômodo. Deitou-se, burca ainda sobre o corpo, como se fosse uma segunda pele, ou talvez sua única pele.


E sonhou. Sonhou com desertos sem fim, onde as burcas flutuavam pelo ar como fantasmas, e onde ele, vestido e nu ao mesmo tempo, era rainha de um reino sem súditos. Ao longe, a voz do pai soava como uma sentença: “Os homens devem ser espelhos da honra.” Mas Yasin, em seu trono de seda, ria. Ria porque sabia: os espelhos também distorcem.


Na manhã seguinte, o rapaz não foi visto. Sumira. Disseram que abandonara o posto, desertara, fugira de algo que não sabiam explicar. Yasin nada comentou. Limitou-se a sentar-se à mesa, beber seu chá e, com um leve sorriso nos lábios, sentir o toque frio do tecido dourado entre os dedos.


Porque há prazeres que, uma vez conhecidos, não se abandonam. Apenas se escondem, como fantasmas atrás de véus.


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Se você chegou até aqui, após a leitura desse conto sobre identidade e desejo, muito obrigado pela companhia.Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.


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