O Lavador
- Pedro Sucupira
- 13 de jun.
- 8 min de leitura
1

Limpar, meus caros, é muito mais que uma assepsia mecânica; é, com todo rigor, o ato solene de apagar rastros. Lavar carros, esse ofício prosaico, tornou-se, para mim, uma ciência de reinícios: um resetar minucioso que desmancha impressões digitais e os indícios ínfimos de histórias sórdidas vividas entre bancos de couro e volantes gastos. Meu trabalho é importante, sim, vital, até, para aqueles que desejam caminhar pela vida sem as pegadas do passado a sujar o presente.
Que seria dos meus clientes sem a minha diligente atuação? São tantas as memórias desfeitas, desmanchadas sob o efeito de um bom detergente de limpeza pesada, que já perdi a conta. Tantas manchas obliteradas, tantos fluidos humanos que, no tempo certo e com os reagentes corretos, desaparecem como se jamais houvessem existido. Sangue — ah, o sangue! — cede apenas ao hipoclorito de sódio, em concentração precisa, agindo por duas horas exatas; só assim o ferro das hemácias, reduzido a bilirrubina, se desprende de qualquer superfície. Já o sêmen — viscoso, tenaz — exige sabão de barra à base de soda cáustica e força bruta. E é preciso pressa: qualquer hesitação e a soda dissolve tecido, pele, o próprio tempo. Há fluídos que não se contam, há marcas que o olho jamais verá, mas que eu, com meus anos de ofício e experimentações, desfaço como um escultor na penumbra.
Minha clientela é fiel e numerosa, e a agenda, como dizem, fechada. Impossível aceitar mais um, vivo ou morto. Ampliar a equipe seria uma solução, mas os tempos são outros, infelizes. Essa nova geração, parida nas entranhas mornas do pós-modernismo, é feita de gente frágil, sem estofo nem culhões, incapaz de enfrentar a realidade nua e crua. Preferem a ilusão democrática das redes, onde um meme vale mais que uma vida, e a moralidade é um avatar pixelado de conveniência. Vivem em bolhas, surfam no irreal, acreditam piamente que diversidade e inclusão são verdades universais, enquanto o mundo, o mundo real — ou melhor, o submundo — fede, apodrece, sangra.
Vivemos em uma quase Gothan. Acredite. Uma cidade gigante, sem redenção, dominada por crueldade, desigualdade e desumanidade. Aqui, um cachorro vale mais que um preto faminto, agonizante na sarjeta. Aqui, arrancam corações de travestis em nome de Deus, e o homem branco, entediado, matou Deus e criou, à sua imagem, outro deus — armado, vingativo, patrão de guerra, pronto para atirar no primeiro "bandido". Bandido bom é bandido morto, dizem, mas os bandidos que andam por aqui vestem ternos finos e colarinhos alvejados, lambuzados com batom de travesti. Eu lavo seus carros diariamente. Apago suas vergonhas. E pela manhã, eles recomeçam, limpos, restaurados, impunes. Se os jovens soubessem disso — soubessem mesmo — talvez não fosse tão difícil encontrar quem quisesse aprender meu ofício. Mas o que não se vê não se sente. O que não sai nos jornais, não aconteceu. Simples.
Minha empresa — sim, sou empreendedor, honrado com CNPJ e nota fiscal — conta com cinco funcionários. Cada um carrega um nome emprestado da velha Itália, terra de hipocrisias e santos decadentes. A ideia foi de Francesco, meu primeiro empregado. Obcecado por A Divina Comédia, chegou certo dia com anotações detalhadas: propôs criar codinomes para os funcionários e, também, classificar os clientes segundo os nove círculos infernais de Dante. Achei curioso e adequado. Afinal, se o Inferno existe, meus clientes, sem dúvida, terão assento cativo. E assim surgiu nossa codificação. Estige — os assassinos. Flegetonte — os misóginos. Malebolge — rufiões e michês. Limbo — os cristãos de fachada. Colina — traficantes, contrabandistas. Judeca — os adúlteros. E o Colírio dos Ventos — os pedófilos — ah, esses, quando nos encontram, nós os apagamos da face da terra com as próprias mãos. Maldita seja essa raça! Como se vê, um inventário humano.
A maioria? Brancos. De vez em quando, um preto aparece, invariavelmente por precaução. O preto não pode errar — ou melhor, pode, mas pagará caro. Às vezes, nem erra, mas paga do mesmo modo. O branco, este goza da dúvida, do perdão, da liberdade. O preto, não. Para o preto, resta a sentença. Primeiro morre, depois — talvez — investiguem.
Outro dia, apareceu uma preta retinta, encharcada de ouro e terror, numa Mercedes-Benz vermelha, 2021, reluzente. Tremia. Pagara por um programa e o parceiro, drogado até a alma, infartou no ato. Morreu sobre ela, que gritava, mas ninguém ouviu. Nenhuma defesa seria suficiente. Nem o morto, se ressuscitasse, limparia seu nome. Mandei Francesco acalmá-la enquanto os meninos limpavam tudo. Casos assim exigem mais: vigilância pós-serviço, prevenção de surtos, garantias. Por isso, cobro caro. Ninguém sai no prejuízo — nem eu.
Aqui, todos são artistas: Francesco, Ticiano, Da Vinci, Pistoletto, Pietro. Quem melhor que os nomes de Roma para representar o teatro humano? A Babilônia nunca desapareceu, só mudou de endereço.
2
Naquela manhã, o calor brotava do chão como se a terra tivesse febre. Os meninos suavam ácido, e o sol fazia a lataria dos carros fumegar como caldeirões de penitência. Eu, sentado sob a sombra rarefeita da oficina, observava as mãos de Pietro a esfregar, com raiva sagrada, o couro branco de um Audi A8. Mancha teimosa, cor de ferrugem e medo. Tinha cheiro de sangue e perfume francês. Eu já sabia que tipo de história se escondera ali.
— Mais um do Colírio dos Ventos — Pietro cuspiu, sem levantar os olhos.
Assenti com a cabeça. Era. Sempre eram. Os piores.
O carro chegara antes do amanhecer, como era o costume. Os donos do pecado preferem a escuridão, mas ironicamente jamais se confessam à noite. Entregam as chaves em silêncio, com um olhar enviesado, meio súplice, meio desafiador. Como se dissesse: “Apaga isso. Apaga quem eu sou.” E eu apago. Por dinheiro, é verdade, mas também por esporte. O mundo, afinal, é um tabuleiro, e eu gosto de ver como as peças se movem depois de lavadas.
— Vai querer serviço completo? — perguntei ao cliente, um homem branco, magro, muito elegante, dessas elegâncias forçadas, como quem tenta vestir a própria decadência com ternos sob medida.
Ele olhou para mim como se eu fosse a escória — o que, de fato, eu sou — e assentiu com a arrogância de quem já esqueceu o que fez. Puxei o recibo. Ele assinou, relutante. Eu gosto de recibos. Gosto de deixar rastros — os meus.
Depois que ele se foi, Ticiano, o mais jovem, chamou-me num canto. Tinha os olhos vidrados, inquietos.
— Chefe, tem algo errado com esse carro — sussurrou.
— Errado como?
— Não sei... é diferente. Tem coisa escondida ali. Debaixo do porta-malas.
Fui até lá. O cheiro já denunciava. Não era só sangue, nem só sêmen, nem só medo. Era o cheiro da morte fermentada, de coisa que não era mais gente. Abri o compartimento e lá estava ela: uma menina. Talvez treze, talvez menos. O corpo retorcido, vestido de seda, pele tão pálida que o sol a ofenderia. Morta.
Silêncio. Ticiano virou o rosto e vomitou. Pietro fechou os olhos e murmurou algo em italiano. Eu apenas respirei fundo. Não era a primeira, tampouco seria a última.
Ali, naquele instante, não houve como evitar a pergunta: até onde vai um lavador? Até que ponto se pode apagar sem também desaparecer um pedaço de si?
Pedi aos meninos que trouxessem os materiais. Sabão, escovas, o tambor de ácido. Tudo. Era serviço completo, como o cliente pedira. A menina, leve como uma boneca quebrada, foi levada com cuidado por Francesco, que sempre se voluntariava para as tarefas mais pesadas — dizia que era sua penitência.
O dia avançou lento, espesso como óleo queimado. A cidade seguia seu curso, indiferente. Mas ali, na oficina, o tempo parou. A menina já não estava entre nós — Ticiano e Francesco cuidaram dela com o mesmo zelo que se reserva a relíquias. Enterrada em um lugar onde nenhuma raiz ousaria crescer. Pietro acendeu um cigarro e ficou ali, parado, olhando para o portão fechado, como quem aguarda um presságio.
O homem voltou às 17h. Sempre voltam. Usava os mesmos óculos escuros, o mesmo terno bem cortado, o mesmo perfume indecente. Desceu do carro sem pressa, com a segurança de quem acredita que o dinheiro resolve tudo. Sorriu com os lábios, mas os olhos estavam mortos.
— Ficou pronto? — perguntou, com tédio.
— Ficou, sim — respondi. — Serviço completo. Como pediu.
Ele me estendeu um envelope grosso. Não toquei. Em vez disso, apontei com o queixo para o fundo da oficina.
— Só mais uma coisa. Preciso que veja um detalhe. Coisa rápida.
Ele hesitou, irritado. Depois andou arrastando os pés, como se tudo aquilo fosse um incômodo. Pietro fechou o portão assim que ele passou. Francesco e Ticiano já estavam posicionados. Eu fui atrás, com calma, segurando o bastão de ferro que costumávamos usar para destravar os pneus das carretas. Não seria necessário. A surpresa ainda era nossa ali.
Quando o homem chegou ao fundo do galpão, deparou-se com algo que claramente não esperava: o corpo da menina, cuidadosamente disposto dentro de um caixão simples. A aparência, embora marcada pela morte, estava serena. A pele limpa, os cabelos penteados, o vestido recomposto. Tudo nela denunciava o cuidado de alguém que ainda crê na dignidade, mesmo depois do fim.
Ao lado do caixão, repousava um tambor de polietileno. Fumaça ainda escapava de sua abertura, e o ar tinha aquele cheiro espesso que antecede a punição.
O homem empalideceu. Seus olhos iam do corpo à estrutura metálica com crescente inquietação.
— O que é isso? — murmurou.
— Justiça — respondi. — Ou algo que se aproxima disso.
Antes que pudesse reagir, Francesco o empurrou com brutalidade para dentro do tambor. A força foi certeira, inegociável — como a sentença que já estava selada. Ele caiu de costas, batendo as mãos nas bordas enquanto gritava, como todos gritam. Tentou sair, tentou lutar, mas ali, com os motores roncando e o rádio no volume máximo, ninguém jamais ouviria.
Diferente do que imaginava, a menina não fora derretida em ácido. Seu corpo passara pelas mãos hábeis de Da Vinci, nosso tanatopraxista. Ele a preparara com técnica e reverência, retardando a decomposição, devolvendo àquela criança um traço mínimo de dignidade. Quando a vítima de um Colírio dos Ventos chegava morta, o protocolo era claro: o corpo era tratado com respeito e entregue à polícia, para que a família ao menos pudesse lhe oferecer um enterro digno.
Mas ao predador... não havia clemência.
— O que é isso?! — berrou ele, agora encostado no fundo do tambor, o rosto deformado pelo pavor.
Pietro me entregou o primeiro galão. O ácido exalava um cheiro espesso, corrosivo, quase espiritual. O homem se debateu, chutando as laterais do tambor, a voz desfigurada pelos gritos. Mas não havia mais rota de fuga.
Derramei o primeiro jato devagar. A mistura de ácido fosfórico e nítrico agiu imediatamente. A carne chiou, a pele borbulhou, e o ar se encheu de amônia e desespero. Ele se contorceu em espasmos, como se cada gota extraísse não só a pele, mas os pecados de dentro para fora. Gritou. Depois arfou. E por fim, calou-se.
Francesco fechou o tambor e soldou a tampa. Ninguém disse nada. A fumaça subia, espessa, como se arrastasse com ela a alma de alguém que não merecia repouso.
Foi Pietro quem rompeu o silêncio:
— Menos um Colírio dos Ventos.
— Menos um — confirmei, lavando as mãos num balde raso, embora soubesse que certos odores não saem com água.
Era assim que fazíamos. Limpávamos os rastros dos poderosos, é verdade. Mas também purgávamos o mundo — um predador por vez. Não éramos santos. Mas havia uma estranha santidade naquilo. Um ritual. Uma fúria contida. Um prazer antigo. Quase um chamado.
Ticiano trouxe três copos. Francesco abriu o uísque. Brindamos sob o ronco dos motores e o silêncio dos mortos.
— Ao trabalho bem-feito — disse Pietro.
— Ao mundo um pouco menos sujo — completou Francesco.
— Ao fim de mais um Colírio dos Ventos — murmurei.
E bebemos. Porque naquela oficina, nós não lavávamos apenas carros. Lavávamos a própria alma — com ácido.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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