A Morte de Deus em Nietzsche: entre o Abismo e a Aurora
- Pedro Sucupira
- 25 de jun.
- 9 min de leitura
Friedrich Nietzsche, um dos filósofos mais provocativos e influentes da modernidade, escreveu dois aforismos notáveis nos quais aborda o tema da “morte de Deus” — uma de suas ideias mais desconcertantes e decisivas. Esses textos, extraídos da obra A Gaia Ciência, não apenas marcam uma ruptura com a tradição metafísica ocidental, mas também lançam uma luz inquietante sobre o vazio que se abre quando os fundamentos últimos da moral e do sentido colapsam.
A seguir, apresento os dois aforismos em que Nietzsche trata diretamente desse tema, e em seguida uma análise filosófica que busca esclarecer o que está em jogo quando o filósofo declara: “Deus está morto”.
Aforismo 1: O homem louco
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido?, perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança?, disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior — e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então! Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação — e no entanto eles o cometeram!” — Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus e túmulos de Deus?

Aforismo 2: O sentido de nossa jovialidade
O maior acontecimento recente — o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, ‘mais velho’. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu — e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós nos encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento — e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o velho Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa — enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo; enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’.
Uma breve análise sobre o sentido filosófico da "morte de Deus" para Nietzsche.
Não é apenas uma frase provocadora ou uma frase de efeito. Quando Friedrich Nietzsche escreveu que “Deus está morto”, ele não estava apenas provocando ou negando a fé de forma simplista. O que ele realmente anunciou — como um raio que rasga a escuridão — foi o colapso de todo um sistema de crenças que sustentou por séculos a moral, a verdade e o sentido na cultura ocidental. Foi um acontecimento profundo, silencioso e devastador, cujas consequências ainda hoje talvez não compreendamos por completo.
A cena do “homem louco” correndo pelo mercado com uma lanterna acesa em plena luz do dia, clamando desesperadamente por Deus, é uma das metáforas mais impactantes e inesquecíveis da filosofia moderna. Ele não está em busca de uma divindade que simplesmente se escondeu — ele tenta alertar uma sociedade inteira que ainda vive como se nada tivesse acontecido. Seu grito é um gesto de ruptura: ele denuncia que o mundo mudou de forma irreversível, mesmo que a maioria ainda não tenha percebido.
Quando afirma “Nós o matamos — vocês e eu!”, o homem louco não está apenas dramatizando, mas revelando a responsabilidade coletiva por um evento colossal: a morte simbólica de Deus. E esse "assassinato" não foi cometido com ódio religioso, mas com as próprias ferramentas que a modernidade mais valorizou: a razão científica, o pensamento crítico, a história, a filosofia, a autonomia do sujeito. Aquilo que o Iluminismo exaltou como libertação — a luz da razão, a conquista do saber — tornou-se também o instrumento que esvaziou os céus e abalou os fundamentos morais e metafísicos da civilização ocidental.
Nietzsche, portanto, não acusa um grupo específico, mas toda uma época. O gesto de iluminar o mundo com a razão trouxe consigo uma consequência inesperada: a dissolução do Absoluto que outrora dava sentido à existência.
Nietzsche não escreve esse epitáfio como quem lamenta o passado ou deseja restaurá-lo. Sua escrita não carrega nostalgia, mas lucidez. Ele não quer retornar a um tempo em que Deus era o centro de tudo — quer, antes, nos mostrar o abismo que se abriu e o que se coloca diante de nós agora. O que morreu não foi apenas uma figura religiosa, mas o próprio alicerce de sentido que sustentava a moral, a ordem, a verdade e a direção da existência ocidental. Deus, para Nietzsche, era o sol metafísico em torno do qual giravam as certezas da civilização. Sua morte deixou o céu escuro — e com isso, perdemos o eixo, o norte.
E agora? Para onde vamos, sem esse centro gravitacional? — pergunta o homem louco. E sua pergunta ecoa como um diagnóstico existencial:
“Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções?”
Estamos em queda livre, deslocados em um universo sem coordenadas metafísicas. E o mais perturbador: continuamos nos movendo, mas sem saber para onde. Nietzsche não nos oferece consolo — ele oferece um espelho brutal, onde podemos ver, refletido, o vazio deixado por aquilo que um dia sustentou o sentido da vida.
Este é o núcleo mais inquietante do diagnóstico de Nietzsche: a constatação de que, sem Deus, não há mais centro. A ordem simbólica que sustentava a realidade começa a ruir. As direções metafísicas — “em cima”, “embaixo”, “certo”, “errado” — perdem consistência. O horizonte se desfaz diante dos nossos olhos. E o que resta? Um vácuo existencial, um abismo aberto, o frio glacial do niilismo — essa sensação de que tudo perdeu sentido, de que nada é verdadeiro, de que todos os valores são apenas construções frágeis prestes a desmoronar.
Nesse novo cenário, até mesmo a linguagem vacila. As palavras já não se apoiam em nenhuma verdade última. A moral herdada, as promessas iluministas de progresso, os ideais universais... tudo se torna instável, questionável, improvável. E ainda assim — talvez este seja o aspecto mais trágico — a maioria das pessoas não percebe. Continuam vivendo como se nada tivesse acontecido, como se o edifício metafísico ainda estivesse de pé.
É por isso que o homem louco se desespera. Ele vê o que os outros ainda não veem. E exclama:
“Eu venho cedo demais. Esse acontecimento ainda está a caminho.”
A morte de Deus já ocorreu, mas seus efeitos ainda não foram plenamente sentidos. Como um trovão que demora a ser ouvido depois do relâmpago, o impacto dessa morte ainda está por chegar ao ouvido coletivo da humanidade.
Contudo, nem tudo é ruína e desespero. Há em Nietzsche uma fresta de luz, uma promessa de aurora — ainda que incerta e exigente. Em meio ao diagnóstico sombrio, ele nos oferece um vislumbre de possibilidade. Nos trechos mais luminosos de A Gaia Ciência, o filósofo nos surpreende: a morte de Deus, para alguns, não é tragédia, mas libertação.
Para os “espíritos livres”, para aqueles que ousam pensar para além dos limites da tradição, o colapso do antigo mundo é também a chance de um novo começo. A ausência de Deus, que para muitos soa como vazio e perda, é sentida por esses como o surgimento de uma nova aurora. O horizonte volta a se abrir — não mais sustentado por dogmas ou verdades absolutas, mas pela coragem de criar sentido onde antes ele era imposto.
Nietzsche descreve essa experiência como algo difícil de nomear: uma mistura de alívio, felicidade, espanto, expectativa e gratidão. Diante da notícia de que “o velho Deus morreu”, os filósofos que não temem a vertigem sentem-se como iluminados por um novo sol nascente.
“Nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa — enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo... o nosso mar está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’.”
Essa metáfora do mar aberto é poderosa: trata-se da liberdade radical diante de nós, sem mapas, sem bússolas herdadas. Um mundo onde tudo precisa ser reinventado — valores, sentidos, projetos. Esse mar é vasto e perigoso. Mas também é fértil — uma vastidão onde o conhecimento, a criação e a própria vida podem ser vividos com uma intensidade sem precedentes.
Nietzsche não nos consola, mas nos desafia. Ele não substitui Deus por outro absoluto. Pelo contrário, ele exige de nós a coragem de viver sem garantias, de criar no vazio, de afirmar a vida mesmo quando o sentido não está dado.
É por isso que ele lança a provocação: “Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos do ato de tê-lo matado?”
Aqui está o cerne ético e estético da modernidade nietzschiana: não fugir do abismo, mas aprender a dançar à sua beira. O que está em jogo não é apenas o fim de uma era, mas a abertura de um novo tempo — um tempo onde a responsabilidade pela criação do sentido recai sobre nós. Um tempo onde, sem garantias, somos chamados a criar, a afirmar, a viver.

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