Taturanas
- Pedro Sucupira
- 12 de jul. de 2024
- 14 min de leitura
“Qualquer um que comporte-se acordado da mesma maneira que se comporta nos sonhos será visto como louco.”
Sigmund Freud
Foi tão real que não parecia um sonho.
Encontrava-me em uma cabana de madeira aconchegante e calorosa, semelhante àqueles chalés das montanhas, aonde trabalhadores vão para apreciar um fim de semana longe da cidade cercados pela neve e pelo frio. Debruçado no parapeito de uma das janelas, vestido roupas invernais e um gorro macio, eu assistia o que se passava do lado de fora. Ali não havia árvores, somente uma enorme extensão de terreno plano totalmente branco por causa da neve. Onde aquele terreno iria dar não dava para saber, pois uma névoa branca acinzentada pairava no horizonte. Se é que havia um horizonte.
A vastidão branca e o horizonte enevoado não eram os detalhes mais interessantes do lado de fora, mas sim as criaturas. Criaturas do tamanho de girafas com pele áspera cor de musgo e tão corcundas quanto um cabo de guarda-chuva caminhavam a passos lentos no terreno gelado. Suas vértebras eram muito proeminentes e esticavam a pele das costas de dentro para fora criando a impressão de que a qualquer momento essa rasgaria. Essas criaturas disformes andavam como que sentinelas seguidas por suas enormes caudas bifurcadas. Um passo atrás do outro, sem qualquer indício de ansiedade, farejando de forma ameaçadora com seus focinhos enormes e olhos grandes e arregalados rápidos sem íris e esclera, apenas uma pupila amarela totalmente dilatada. A expiração quente que se condensava no ar frio formando grandes lufadas de fumaça era tamanha que tornavam aquelas criaturas como enormes chaminés ambulantes.
No meu âmago onírico, eu sabia que procuravam por mim e por isso sair de dentro da cabana era improvável e desnecessário. Ali eu estava seguro. Minha cabana. Meu porto seguro. A comida nunca acabava, as camas e poltronas limpas e macias e a água do banho sempre quente. Roupas monocromáticas e confortáveis recém lavadas com cheirinho de amaciante. Coisas para se divertir tinham aos montes. Era o meu lugar de segurança ideal. Ali eu era feliz, pois sabia que nada podia me agredir.
Nesse meu mundo onírico eu era um adulto dentro do corpo de uma criança. Pensava e agia como adulto, avaliava, ponderava e julgava as ações dos próximos com a mente de um ser amadurecido, tudo isso revestido por um corpo de uma criança. O que me obrigara a amadurecer tão precocemente? Quais circunstâncias que me transformaram em um adulto tão fisiologicamente criança? Ou uma criança tão fisiologicamente adulta?
Eu não sabia dizer, mas sabia que a todos minha aparência juvenil enganava e por muitas vezes usei isso ao meu favor. Sabia manipular quando era necessário e agora, nesse meu mundo imaginário, eu usaria de todas as minhas habilidades e artimanhas para descobrir o meu algoz. Aquele que me levara a ruína desde tão cedo. Aquele cujas ações causaram um lapso temporal de escuridão, esquecimento e raiva, que me transformaram nesse ser adulto infantilizado, um pessimista agressivo, um depressivo com vontade de viver, um ser pensante e curioso que sofre ao descobrir. E tudo isso antes mesmo de eu ter o controle sobre minha persona, antes mesmo de eu ter o poder de me arruinar por conta própria. O algoz que transformou a criança em adulto e agora, aqui no mundo externo ao sonho, eu me torno um adulto que ainda lembra e sofre com a criança que não pôde ser criança.
Era esse o objetivo de todas as ações do meu subconsciente que vinham à tona como forças do mar durante o meu período onírico de inconsciência. Período esse em que eu estava totalmente à mercê das memórias do passado que se transformavam em sonhos-pesadelos, ou pesadelos-sonhos, tudo dependeria de quem sairia o vencedor dessa empreitada. Empreitada perigosa esta de navegar pelos lados obscuros e omissos da mente, aqueles que só temos acesso em momentos epifânicos.
Era assim que meu eu-subconsciente gostaria de ser lembrado. Realmente como eu era, sem máscaras reais e mentiras sorridentes. Um órfão de pais vivos-presentes. Um solitário convivendo com familiares piegas, pegajosamente carentes, que despejavam em mim, criança-adulta com membros infantis e traumas de velhos, todas as suas frustrações desesperadoramente insuportáveis até mesmo para eles. Na concepção deles eu era criança-inocente, raciocínio e mentes imaturas e de movimentos lentos, incapaz de compreender toda profundidade da podridão que eram suas vidas natalinas cobertas de hipocrisia.
***
Saí do momento de reflexão frente à janela. Antes contemplando o lado externo da cabana, o meu interior consciente, frio e cheio de monstros, e agora era o momento de contemplar o lado de dentro da cabana, o subconsciente.
Fui para o banheiro.
Tomando banho, aproveitando os últimos minutos naquela água quente e reconfortante, o banho de uma criança sem preocupações, sem boletos e sem relações abusivas, eu olho para os meus pés e noto o ralo. Através dos pequenos buracos por onde a água escorria vejo algo mexendo e se remexendo. Curioso e atraído por aquele movimento peculiar, com o chuveiro ainda ligado, abaixei-me. Mesmo de cócoras não estava perto o bastante para determinar o que era aquele ser de movimentos estranhos o que me deixou mais curioso. Na tentativa de se aproximar, ajoelhei-me e, como se fizesse uma flexão de braço, levei o rosto o mais próximo possível ao ralo. O susto que levei foi intenso. Instintivamente, fazendo força com os braços, joguei o corpo para trás, mas minha mão e meus joelhos escorregaram e meu rosto foi de encontro ao chão.
O que me assustou foi uma pequena taturana de corpo verde-musgo com o dorso todo coberto de pelinhos finos verde-fluorescentes. Esse contraste de cores criava a ilusão de movimento. Eu, caído, a água batendo nas costas, me arrepiava enquanto assistia aquele pequeno ser repugnante se esforçar contra a corrente de água para sair pelo ralo.
Desde sempre odiei taturanas independente da espécie. Minha mente fóbica nunca soube distinguir. Todas eram rapidamente categorizadas como perigosas e aptas a causarem dor lancinante através dos pelos e corpo. Esse era o meu medo de estimação e uma parte da minha psique era dedicada exclusivamente a ele. Eu vivia em constante estado de alerta para evitar o encontro com qualquer taturana, e, se por acaso visse alguma, eu desviava para longe. Não tinha coragem para o confronto.
Nesses encontros ocasionais os atos eram sempre irracionais como minhas emoções o são hoje em dia. Não cogitei em fechar o ralo, nem desligar o chuveiro, e muito menos em se enxugar. O medo de encontrar alguma taturana presa à toalha de banho era vívido. Minha única ação foi sair daquele lugar.
Quando cheguei na sala, meu vizinho, um grande amigo da família e frequentador assíduo de nossa casa no mundo real, estava agachado no meio da sala. Assim como na vida não-onírica, ali também sabia de onde ele surgira. Tudo era um sonho, mas será que menos real que a realidade?
– O que você está fazendo aqui?
– Oi. Venha aqui, olha que interessante – sem se virar ele respondeu fazendo um sinal com a mão para eu me aproximar.
Cheguei perto e olhei por cima do seu ombro. Vi uma folha de papel esticada no chão e no meio da folha, rastejando, uma taturana, igual à que eu havia visto no banheiro, tentava escapar. O vizinho segurava um isqueiro na mão e ateava fogo nas quatro pontas da folha. Quando o fogo à alcançou, a taturana começou a se retorcer e depois de alguns minutos se enroscou formando um pequeno círculo chamuscado.
Agachei-me ao lado dele e fiquei ali contemplando a morte da taturana. O ato usar fogo para torturar taturanas era algo corriqueiro que o vizinho e eu fazíamos. Contudo, apesar de frequente, era o nosso segredo. Ninguém poderia saber daquele nosso passatempo.
A primeira vez não me recordo, talvez pela tenra idade, cujas memórias não temos mais acesso a não ser no mundo onírico. Memórias esquecidas cujas marcas e consequências permanecem no corpo e na mente em forma de reações. A memória que tenho em meu corpo é a de que ficava impressionado nas primeiras vezes e com a repetição eu fui me acostumando, normatizando o sofrimento e até gostando de vê-las morrendo. Era como se eu me vingasse do medo que elas despertavam em mim. Esse momento em que o ser passava de rastejante para petrificado em contato com as chamas era o único que eu tinha a capacidade de encarar minha fobia.
***
O vizinho me convidou para queimarmos mais uma taturana, “das grandes”, como ele dizia. Entretanto, daquela vez, eu quem seria o ateador de fogo. Ansioso, inseguro e com calafrios, eu não tinha confiança nenhuma de que daria certo. A cada movimento da taturana, um tremor percorria minha espinha e a certeza do insucesso só aumentava. Essa era uma atividade que exigia autoconfiança, determinação, rapidez e destreza. Você não poderia titubear. Era escolher um dos lados da folha e atacar e assim continuar atacando por todos os lados. Meu vizinho me passou o isqueiro. Tentei uma vez pela ponta da esquerda, mas recuei. Outra tentativa pelo lado direito, sem sucesso. A taturana era grande demais para uma folha de papel e conseguia escapar com seus movimentos sigmóides. Com uma pequena pá, meu vizinho empurrava a lagarta para o centro de novo, e, de novo, eu titubeava e recuava, não queria estar ali. Me sentia culpado por não atender as expectativas do adulto que me conduzia. Foram várias as tentativas até que o vizinho decidiu usar álcool.
Uma vez em contato com o álcool, a taturana passou a se movimentar com maior vigor. O cheiro do álcool era forte e me incomodava.
Com o tempo de convivência e com as várias experiências de fogo, o vizinho se tornou o meu tutor em atear fogo em taturanas. Eu confiava no seu julgamento e eu deveria confiar, caso contrário eu sofreria as consequências. Consequências essas que foram tão bem descritas e listadas nas ameaças que nasceram nos primeiros encontros enquanto eu ainda tinha forças para protestar contra aqueles atos medonhos de atrocidade.
Segui o seu conselho. Aproximei o isqueiro do centro da folha encharcada de álcool. O fogo se alastrou rápida e uniformemente. Atingiu a taturana que se contorceu de forma tão vigorosa que saltou e caiu em cima da minha perna. Uma dor aguda, como milhares de agulhas penetrando, atravessou minha perna se alastrando em direção à região da virilha. Eu saltei para trás caindo sentado com um forte baque no chão e comecei a gritar e a espernear. Não sabia se era por causa da dor ou do nervosismo de ter uma taturana presa ao corpo. A taturana se rastejava pelo meu corpo escalando minha perna e deixando por onde passava um rastro de pele avermelhada latejante e gosma branca. Comecei a me arrastar para trás sacudindo as pernas, mas ela estava presa como que fixada à minha pele. Na tentativa desesperada de tirar aquele monstro do meu corpo, eu bati a mão nela e uma dor penetrante percorreu por todo o meu braço até a base da nuca. O desespero fóbico e irracional tomou conta de mim. As dores, a taturana ainda se movendo em algum lugar à minha frente, a folha pegando fogo e o calor que eu sentia no rosto. Nesses momentos de terror extremo, o único mecanismo de defesa que resta ao corpo é o apagão. Meus olhos se fecharam. Eu desmaiei.
***
Ainda em sonho acordei com os olhos inchados e lacrimejados. Uma fina crosta de remela havia se formado grudava minhas pálpebras e cílios. Abrir os olhos foi tão penoso quanto descer da cama. Minha perna e mão direitas queimavam e doíam ao contato. Eu sentia o sangue fluindo para as regiões do meu corpo que haviam entrado em contato com aquela taturana. Todo um batalhão de células e citocinas inflamatórias indo contra as toxinas do veneno de Lepidoptera. Veneno injetado, contra minha vontade, em minha alma e que deixou cicatrizes. Cicatrizes que nenhuma resposta imunológica foi capaz de curar até hoje. O que restou para essa criança, tratada como adulto, foi aprender a lidar com a dor do passado e as marcas do presente.
Cansado e sonolento, exaurido, eu poderia ter ficado ali estirado na cama esperando, mas a ansiedade por saber dos fatos e a sensação constante de que taturanas subiam na cama me impediram. Na tentativa de descer da cama, apoiando no pé direito, quase fui parar no chão novamente. Meu pé vacilava sem força suficiente para sustentar o peso do meu corpo. A única solução que me restava era compensar jogando o peso na perna boa.
Apenas a luz de um dia cinzento e nevoso penetrava através das janelas criando sombras nos cantos. A visão embaçada e a pouca luz dentro da cabana dificultavam ainda mais eu distinguir as coisas. O que era real? O que realmente aconteceu? Aquele momento realmente aconteceu? Estaria minha mente me pregando peças? As cicatrizes e a dor estavam lá para provar o contrário. A sensação foi de que uma vida inteira se passou naquele lapso de tempo. Distinguir fatos passados e presentes, identificar as cicatrizes e os seus traumas causantes não foram tarefas fáceis.
Mancando e olhando para o chão, só conseguia ver vultos e formas distorcidas na expectativa-fóbica de me deparar com algo rastejante. O nervosismo, uma sensação de asco e arrepios constantes me dominavam. Minha testa queimava, minhas roupas molhadas de suor. Eu estava sozinho, com febre, parcialmente sem visão em um ambiente mal iluminado. Uma perfeita cena de filme de terror e eu era o protagonista. Por onde estaria o vilão?
Se à fobia eu tivesse me entregado, teria permanecido na cama, mas eu sabia que precisava avançar. O instinto de sobrevivência é sempre maior em qualquer situação e eu queria viver. Lembrem-se, uma criança ansiosamente depressiva que queria viver. Andei até a metade do quarto onde fiz uma pausa analisando o ambiente na tentativa de encontrar o caminho. Alguns minutos se passaram até eu encontrar a direção da porta. Retomei a caminhada e olhando na direção da porta eu notei, com minha visão periférica, que as paredes ondulavam. Atribui aquele efeito à febre e ao estado mental de perturbação em que me encontrava.
Não sei quanto tempo demorei para chegar na sala. Estava cansado e ofegante.
O vizinho não estava ali. Refleti um pouco e decidi que iria para a cozinha. No trajeto era preciso atravessar a sala composta por dois sofás posicionados em forma de L no centro. Aproximando-me dos sofás, reparei no quanto eles também ondulavam de forma frenética quase que borbulhavam. Dessa vez não foi algo que eu pude ignorar responsabilizando minha febre e fobia. Olhei ao redor e toda cabana borbulhava. Paredes, móveis e até o teto ondulavam em movimentos regulares quase que milimetricamente sincronizados. Ainda com dificuldade para andar tentei acelerar o passo em direção aos sofás na expectativa que a proximidade traria nitidez para minha visão. À medida que me aproximava os meus olhos focalizavam os objetos. Nesse momento eu segurei a respiração e o medo desencadeou uma reação de fuga que veio acompanhada de um jorro cavalar de adrenalina na corrente sanguínea que tornou tudo claro. Tomei ciência do que acontecia. Eu quis gritar, mas tapei a boca com medo de o barulho chamar a atenção daquilo que eu via.
Meu lugar de segurança ideal havia se tornado em meu pior pesadelo.
O sofá, as paredes e o teto estavam todos cobertos de taturanas. Aquela ondulação, na verdade, era o efeito de milhares de taturanas se enroscando, rastejando-se uma por cima das outras. Não havia um espaço que não era ocupado por taturanas de corpos verde-musgo cobertos por pelos verde-fluorescentes.
Mas a cena mais horripilante ainda estava por ser revelada. Em cima de um dos sofás milhares de taturanas se remexiam com uma energia frenética emaranhando-se umas as outras a ponto de formar um monte disforme e gosmento. As taturanas ali pareciam que lutavam entre si por alguma coisa. Nessa hora me lembrei das hienas quando disputam por um pedaço de carniça e eu podia escutar aquele grunhido agudo sendo emito por todas aquelas taturanas.
O medo-fobia agora atingia o nível do pânico-terror. Essa metamorfose medonha eu sentia em cada parte corpo. Meu estômago foi o primeiro a se manifestar e ali mesmo eu vomitei uma quantidade anormal de líquido amargo amarelo-esverdeado. Aquele fluido gástrico caiu bem em cima daquela pavorosa massa disforme de taturanas dispersando-as por instantes. Quando elas se afastaram eu pude ver pelo que elas tanto brigavam: o corpo do vizinho.
De tão horripilante que era a cena, meu corpo e mente paralisaram. Não conseguia raciocinar e muito menos decidir o que fazer. Nenhuma reação seja de fuga ou de luta. Não havia o que fazer. Eu estava encurralado, seria facilmente coberto por milhares de taturanas e morto em meio à dor excruciante transmitida por aquelas infinitas agulhas verdes.
Foi uma visão rápida, mas sem dúvida era o meu vizinho. Como ele havia parado ali? O que havia acontecido durante o tempo que fiquei desacordado? Eu não sabia. Um salto temporal em um sonho que havia se tornado um pesadelo. Na hora eu não pensei em nada disso. Não havia espaço em minha mente para a razão. Eu era puro medo e instinto. Aquele monte de taturanas se gladiava por aquela cabeça e quando uma delas saiu de dentro da boca do vizinho, eu soube que o cérebro dele era o troféu.
Agora, depois de anos, relembrando de toda essa experiência em sonho, o que mais me intriga é pensar em taturanas atacando. Eu já li muito sobre essa espécie, sempre evitando as fotos, e não importava a fonte, todos afirmavam a mesma coisa, que elas eram herbívoras. Nunca tinha lido que taturanas se alimentavam de vísceras, ainda mais a humana.
***
Eu estava em uma cabada em lugar nenhum cercado por neve e criaturas de mais de cinco metros de altura que queriam minha cabeça. Do lado de fora cheio de ameaças me aguardando e do lado de dentro, onde antes era meu lugar de segurança, era de tal maneira perigoso. Cogitei a morte voluntária, mas não valia a pena, pois a única forma de se matar naquelas circunstâncias era me jogando no monte de taturanas. Minha fobia jamais permitiria isso. Morrer queimado por taturanas ou lutar pela sobrevivência? Eu já estava marcado por queimaduras de taturanas, já tinha sentido a dor que apesar de excruciante era suportável. Depois de tanto tempo queimando taturanas, eu era um sobrevivente. O que mais poderia me acontecer além de mais queimaduras? O que mais poderia me machucar se cheio de cicatrizes eu já estava?
As maiores epifanias surgem nos momentos mais inusitados. Vendo o vizinho sendo atacado e devorado de dentro para fora, um sentimento súbito de entendimento me acometeu. Taturanas são grotescas, nojentas, perigosas e nada atrativas e temos uma reação natural de repulsa por esses seres. Um mecanismo de defesa que herdamos de nossos ancestrais que os manteve vivos ao longo da evolução. Contudo, assim como também somos medrosos, taturanas também o são. Uma taturana sozinha nada poderia fazer, apenas tentaria escapar, mas quando juntas, elas reconheciam a sua força e revidariam, acabando com o seu opressor.
Assistindo aquela cena, eu percebi quem era o verdadeiro vilão de toda aquela narrativa que havia se formado em minha mente infantil. Meu vizinho era o algoz. Ele quem nos torturava com fogo e matava, e nós apenas estávamos lutando pela nossa sobrevivência. Elas não me queriam, não estavam atrás de mim, mas sim era contra ele que elas revidavam. Nós erámos vítimas sem motivos racionais para sentir culpa.
A metamorfose do medo ainda estava em processo dentro de mim. Depois do terror veio a fase de compreensão da essência. O meu medo nunca foi de taturanas, minha fobia nunca foi contra criaturas pequenas indefesas, mas sim das atrocidades que meu vizinho havia cometido contra mim, marcando-me com fogo, tirando-me de minha inocência, assim como ele fazia com as taturanas. Minha perspectiva havia mudado. Agora, o narrador da história não era mais o algoz, os oprimidos assumiram a narrativa e agora eu sentia empatia pelas taturanas.
Sorri, pois me alegrava com a vitória delas. O verdadeiro monstro havia sido destruído.
***
Passei a vida toda fugindo dos medos e ameaças imaginárias, criando espaços seguros impenetráveis. Fui iludido e manipulado pelos meus opressores e criei minhas narrativas baseadas na visão deles, onde eles eram os heróis e toda minha raiva e medo eram transferidos para o que eles determinavam que deveriam ser os vilões. Em verdade, eles eram os vilões e merecedores do meu desprezo.
Naquele momento de revelação, eu tomei controle da situação e, com sentidos e movimentos mais ágeis, fui até o quarto. As taturanas que aglomeravam no teto e nas paredes eram tantas que começaram a cair, uma chuva de taturanas dentro da cabana. Eu precisava me proteger. Entrando no quarto, fui direto para o guarda roupa a procura de um cobertor, grosso o suficiente para impedir a entrada das milhares de agulhas. No fundo de uma gaveta encontrei uma manta vermelha com a qual me cobri por completo.
No caminho para a porta de saída parei de frente para uma janela e olhei para fora. Os monstros curvados de pele áspera ainda estavam lá, zanzando, porém, aquela sensação de que eles procuravam por mim sumira. Será que eles realmente são monstros e que eu devo temê-los? As perspectivas mudavam e preconceitos eram desfeitos.
Abri a porta e saí. Me descobri da manta e joguei-a o mais longe que consegui. Ela caiu na neve e o único contraste que se via eram o vermelho da manta e os pontos verdes rastejando. Comecei a caminhar no terreno coberto de neve, calma e tranquilamente, pois não queria atrair atenção dos monstros. Olhando de um lado para o outro, perscrutando, avaliando, conhecendo, descobrindo aquele novo espaço. Depois de ter andado alguns metros para longe da casa percebi que aqueles monstros não me procuravam e que a neve não era fria. Os monstros só eram monstros enquanto eu estava na minha falsa zona de segurança. Agora, perto deles, eu via que eles não passavam de crianças assim como eu.
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