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  • Pedro Sucupira

A Praça “Abandonada”


– O que dizer dos jovens de hoje em dia. Aliás, todos são jovens comparados à ela. Todos, sem exceção. Até a mulher viva mais velha do mundo continua sendo mais jovem do que ela. Ela estava aqui bem antes de tudo o que a rodeia surgir. Antes mesmo de receber o nome que hoje lhe dão. Antes mesmo de surgir a palavra falada e a escrita. Depois de todas as mudanças, ela permanece, um respiro verde em meio à selva de concreto que a cerca. Hoje, no quadro Show de Horrores, contar-lhes-ei a história da Praça Abandonada ou Amaldiçoada? Fique conosco para saber mais sobre os atos horrendos ocorridos nesta praça.

– A transmissão acontece agora deste lugar macabro e que transpira terror. Como vocês podem ver é uma praça pequena – continuou o apresentador direcionando com o dedo indicador onde a câmera deveria filmar. – Temos aqui, bem no centro da praça, uma árvore que de acordo com nossa produção é uma Handroanthus impetiginosus de mais de quarenta anos com toda sua imponência – disse o apresentador olhando para a copa da árvore de galhos pelados, com apenas alguns penduricalhos de folhas secas prestes a cair, e suas flores arroxeadas efêmeras. – De acordo com nossas fontes, esse grande ipê-roxo foi plantado há quatro décadas em homenagem a uma das filhas de uma das moradoras da região que faleceu em um acidente.

– Ao redor notamos que há diferentes tipos de vegetação rasteira, como essa Tradescantia zebrina que já tomou conta de grande parte do terreno e ali – o apresentador aponta para o declive levemente acidentado que desembocava em uma rua – há a famosa Arachis repens, muito comum nesta cidade.

– Tentamos contato com outros moradores, mas parece que a região não é a das mais habitadas. Aqui, logo ao lado da praça, temos esse prédio de quatro andares, mas com apenas alguns moradores – disse o apresentador, forçando um tom de suspense e medo na fala, apontando para as janelas acessas. – Do outro lado há esse paredão que dá para uma casa também abandonada. A região se tornou desabitada depois dos desaparecimentos que até hoje estão sem solução. Até a polícia abandonou os casos e os moradores remanescentes permanecem por falta de opção. Durante o dia vimos alguns idosos e alguns outros moradores do próprio prédio, mas que se recusam a conversar conosco. Apenas observam – fez sinal para a câmera cortar a filmagem. – Fred, filmaremos só mais uma ou duas frases e vamos logo embora. Esse local me dá arrepios.

– Talvez seja esse o objetivo do seu canal, causar arrepios e medo nos espectadores. – Fred respondeu com ar de deboche, saindo de trás da câmera média portátil.

– Deixa de ser idiota e liga logo essa câmera – o apresentador não conseguia mais esconder o cansaço, irritação e o nervosismo. Foram horas de viagem para chegar a esse bairro famoso por ser “mal-assombrado”.

Marlon Abude, o apresentador, já se deparara com locais com tal fama, mas nenhum deles carregava uma aura tão sombria e pesada como essa praça. Mal chegou e já queria logo ir embora, mas era preciso aproveitar todas as oportunidades. Desde o início sabia que manter um canal no YouTube não seria fácil e que conceções precisariam ser feitas. Correr riscos seria necessário. Já se arriscara pela fama em alguns nichos diferentes, mas sem ibope. Até mesmo no caminho da trapaça, enganação, humilhação e abusos já percorrera, mas sem sucesso. Em dado momento percebeu que o que mais atraia a atenção das pessoas eram mortes e tragédias, e lá estava ele, depois de quase um ano no mundo dos assassinatos, assombrações e massacres, numa praça abandonada em uma noite fria em busca de visualizações e curtidas.

– Quais serão os segredos que essa praça esconde? Por que tantos desaparecimentos e mortes inexplicáveis? O que será que há debaixo deste chão? – disse o apresentador batendo o pé e deixando um caminho de destruição na vegetação rasteira. – Vocês aí de casa ficarão aterrorizados com os acontecimentos macabros que ocorreram nesta praça. A segunda parte dessa história será divulgada em um outro vídeo se, e somente se, este vídeo alcançar a marca de um milhão de visualizações e duzentos mil curtidas. E não se esqueçam de se escreverem no canal. E é nessa que eu vou. Corta!

– Vamos, Fred. Já deu por hoje. Este vento frio está ressecando meus lábios. Depois gravamos a continuação em uma outra praça qualquer. Todas as praças são iguais. Não precisaremos voltar aqui. Este lugar me dá arrepios. – Fred desligou a câmera, arrumou os shorts largos e ajeitou o boné. Acendeu um cigarro e começou a descer o declive da praça em direção ao carro.

Ambos desceram em direção à rua sem saída onde o carro novo, recém comprado com os ganhos provenientes da monetização do canal, estava estacionado. Era preciso manobrar o carro e seguir por quase quinhentos metros na direção oposta à praça onde a rua se conectava perpendicularmente à outra.

Marlon, sem receio nenhum de deixar de expressar o seu medo, descia estrambelhado, levantando as pernas mais que o necessário como se estivesse andando em um pântano evitando a lama. Esmagando qualquer tipo de vegetação que estivesse na sua frente, não respeitava o caminho demarcado por ladrilhos, que formavam padrões de flores, próprios para os transeuntes.

– Aquele texto inicial foi uma jogada de mestre. Vai atrair a atenção de qualquer um que começar a assistir o vídeo. São nos primeiros segundos que você prende a atenção do telespectador. Pena que a autora não quis me emprestar por livre e espontânea vontade. Um pequeno roubo por uma causa maior. Aliás, duvido que aquela professora assista ao meu canal. Chegando lá, Fred, você já edita o vídeo que amanhã a noite eu ‘subo’ para o canal. Será um sucesso, você verá – Marlon disse olhando de esguelha para Fred.

– Pera aí – Fred parou abruptamente. – Você me contratou para dirigir e filmar, não para editar vídeo. Com a edição do vídeo o preço aumenta.

– Como assim? O Diego disse que você faria tudo por um preço só?! Vocês, freelancers, são um bando de mercenários. Vocês me levarão à falência.

– Marlon, você está pagando pelo serviço de filmagem e motorista, edição de vídeo é outra alçada que requer outros conhecimentos. Em momento algum você mencionou que precisava de um editor de vídeos – Fred respondeu com tom de raiva. Já estava cansado de ser explorador por Youtubers falaciosos exploradores de mão de obra.

– Calma, moço, chegando lá combinamos tudo certinho – respondeu o apresentador. Lidava com essa classe trabalhadora há anos e sabia como ludibriar. Seu vídeo seria postado no dia seguinte a noite sem atrasos. Já visualizava os números do seu canal subindo. A expectativa de alcançar os 100 mil seguidores e receber sua placa de prata era alta. Quem sabe até o final do mês isso aconteceria?!

Na rua sem saída, bem próximo à praça, havia um único poste com uma luz amarela pálida e fraca. Enquanto desciam o declive pouco acidentando rumo ao carro, a luz do poste se apagou cobrindo os dois em uma escuridão parcial. Em uma cidade grande iluminada nenhuma rua fica totalmente sem luz. As luzes de prédios, casas e de outras ruas adjacentes indiretamente iluminavam a rua sem saída e a praça.

Marlon, o apresentador, levou um susto que quase perdeu o equilíbrio de vez e caiu. – Era só o que me faltava. Ficar neste local apavorante e sem luz. Ninguém merece. Começou a apalpar os bolsos à procura da sua felicidade chamada celular. – Menino freelancer, para um pouco, por acaso você viu o meu celular? – Fred caminhava à frente segurando a câmera debaixo do braço enquanto tentava acender um cigarro de palha.

– Explorador de freelancers, não, eu não vi nenhum celular. Deve ter caído perto da árvore enquanto você fazia seu pequeno show medonho de assustar criancinhas. Olhem quantos desaparecidos nessa praça totalmente normal que eu finjo ser assombrada para ganhar seguidores.

– Idiota. – Marlon nem se deu ao trabalho de declamar um discurso em defesa própria, pois ele sabia a fraude que era. – Liga para mim para ver onde ele está – disse, apalpando os bolsos do blazer e da calça.

Fred pegou o celular no bolso da calça e discou. Um brilho seguido do som clássico de um Iphone entre as folhas da Tradescantia zebrina rasteira que rodeavam a área perto da árvore denunciou a posição onde Marlon havia deixado o celular cair.

– Caralho, olha onde está. Estava tão focado em terminar que nem notei quando caiu. Vai manobrando o carro enquanto eu volto para pegar o celular – disse o apresentador com um ar de desânimo. Ser chamado de fraude ainda era algo que o abalava. A síndrome do capitalista-impostor-explorador era muito real para ser ignorada. Mesmo com quase quarenta anos ainda não aceitava e nem assumia que o que o impediu de ser um pária indigente na sociedade eram seus privilégios de homem cis branco e sua ascendência classe mediana. O que seria dele sem a tutela vitalícia dos pais? O que seria dele sem a gorda mesada? Com esses pensamentos o assombrando, Marlon começou a subir o declive em direção à árvore para pegar o celular.

O retorno à árvore exigiu mais esforço que o apresentador esperava. O declive era mínimo, mas na metade do caminho Marlon já estava esbaforido. Por dentro do blazer azul marinho alugado o calor era quase insuportável, mas não ousou tirar para não correr o risco de qualquer dano. O aluguel daquele pequeno mimo havia sido uma pequena fortuna. Não havia a possibilidade de ter que arcar com despesas por dano ou sujeira.

Parado para recuperar o fôlego, Marlon olhou ao redor e notou que algo havia mudado. Tudo havia parado. As folhas não se moviam. Olhou para trás procurando por Fred que se encontrava dentro do carro com faróis acessos, mas não se movimentava. Até o ar estava parado. Um leve arrepio começou a percorrer a sua espinha dorsal começando do cóccix e subindo até a cervical. Olhou para o seu objetivo, a área ao redor da árvore, e notou que atrás dessa um rosto o encarava. Metade de um rosto com um olho bem arregalado, a esclera branca ao redor de uma pupila preta dilatada se destacando no escuro e meio encoberta por uma cabeleira escura desalinhada, olhava diretamente para ele. O arrepio de medo se intensificou e os joelhos do apresentador vacilaram. Um leve dobrar dos joelhos se preparando para a fuga enquanto forçava os olhos para tentar enxergar em meio ao quase breu o que havia a sua frente. Será mesmo um rosto ou estou imaginando? Marlon permaneceu estagnado enquanto sua mente trabalhava. Um leve farfalhar de folhas e chegou à conclusão, ou ao menos se convenceu disso, de que era apenas uma folha de uma Monstera deliciosa que se enroscava no tronco da Handroanthus.

A coragem retornou ao corpo em forma de força que sustentava e endireitava os joelhos, mas os arrepios crescentes permaneciam e uma taquicardia começava a se intensificar. Uma crise de ansiedade agora não, por favor. Continuou caminhando em direção ao local. Aliás, o que seria da vida de um influencer sem o seu celular. Precisava encontrá-lo, pois sua vida se resumia a esse pequeno eletrônico.

Após minutos que pareceram horas, com sintomas de uma crise de ansiedade se intensificando a cada passada, Marlon chegou ao ponto onde avistara a luz do celular. Agachou-se e pôs-se a tatear o chão em meio a vegetação rasteira de Tradescantia, que não era tão rasteira assim. O simples de cócoras não foi suficiente, foi necessário pôr-se de joelhos e com as duas mãos a tatear o chão para enfim encontrar o que procurava. Apalpou o formato retangular e fino do objeto, um momento de alívio. Uma pausa na arritmia. Quase que no mesmo instante do encontro escutou o farfalhar de folhas e por instinto olhou para a árvore. Ali estava, a espiar, um rosto, emoldurado por cabelos desgrenhados, que o espiava através de olhos arregalados e pupiladas dilatadas. O corpo do ser desconhecido estava escondido atrás da árvore, apenas metade do rosto e as mãos apoiadas no tronco, as unhas encardidas tão grandes quanto a mão, estavam à vista. Apesar da proximidade, Marlon não soube distinguir se o ser estava também agachado ou de pé.

O seu instinto de sobrevivência aguçado pela crise ansiosa crescente só foi capaz de responder com um movimento rápido do corpo de medo e repulsa afastando-o da assombração. O apresentador pulou como um gato assustado caindo de costas e rolando alguns metros abaixo. Tentou se levantar, mas suas pernas haviam se enroscado nos cipós da vegetação. Celular ainda em mãos, barriga para baixo, levantou a parte de cima do corpo como se fizesse uma flexão de braço, o blazer limitando os movimentos do tronco. Levantando a cabeça como alguém que procura pelo ar no processo de afogamento, o apresentador levou um susto tão intenso que preferiria ter continuado submerso na vegetação. Logo a sua frente, outra aparição, semelhante a primeira, cabelos desgrenhados, olhos arregalados, esclera ictérica, corpo disforme, membros grandes e esticados que imitavam pernas e braços, todo o seu corpo coberto de imundices e as unhas garrafais encardidas sempre a vista como uma ameaça, totalmente de cócoras, e o pior, defecando jatos e mais jatos de fezes líquidas. Torcendo a cabeça de lado lentamente, o segundo ser escancarou um sorriso com dentes podres para Marlon. Um sorriso que esboçava escárnio e repulsa. Um sorriso de dentes podres em uma boca que se alimentava de fezes.

O cheiro repugnante invadiu sem piedade as narinas de Marlon que caiu mais uma vez no chão e começou a espernear tentando se desfazer dos cipós. De supetão, Marlon conseguiu se sentar e com as mãos livrar as pernas. Ia se levantar quando notou que várias aparições, seres curvados e encardidos, começavam a convergir para a praça de todas as direções. Mão encardidas com unhas grandes começaram a surgir de várias direções pressionando, empurrando e segurando o apresentador. Paralisado, impedido de se mover, começou a gritar, mas nada acontecia. Ainda permanecia no chão. Sentia-se sufocado pelo mal cheiro, pelos cipós enroscados pelo corpo, pelo blazer e pelas centenas de mãos. O medo aumentou atingindo o patamar do desespero. A cabeça ainda continuava com os movimentos livres e no desespero começou a movê-la de um lado para o outro. O que são esses seres humanoides? Uns carregando sacos enormes nas costas. Um que cavava pequenas covas e nelas plantava árvores natalinas de plástico. Outro, passando logo perto dos seus pés, sempre olhando para baixo carregando pedras nas mãos. Um cheiro insuportável que misturava fezes, carne em decomposição e esgoto. Vários rostos encardidos, olhos arregalados, escleras de vários os tons, começaram a convergir centripetamente para o campo de visão de Marlon criando uma nuvem de cabelos desgrenhados. Nesses momentos de terror extremo o único mecanismo de defesa que resta ao corpo é o apagão. Marlon desmaiou.

O apresentador despertou com o tapa no rosto que Fred lhe deu. Ainda permanecia no chão, agora todo sujo e encardido, em meio à vegetação rasteira.

– Você está bem? – perguntou Fred.

– O que aconteceu? – disse o apresentador, olhos arregalados, olhando para todos os lados procurando os seres encardidos que o perseguiam.

– Sei lá. Você estava demorando demais, sai do carro para ver onde estava e do nada te vi aqui, agachado, calças arriadas e defecando. Olhe para você, todo sujo de merda. Não acreditei no que estava vendo. Voltei para o carro e resolvi esperar. Passou quase uma hora e nada de você dar as caras. Decidi voltar e agora te encontro aqui assim, dormindo. Você está querendo voltar ou não? Já está ficando muito tarde e agora quem está ficando com arrepios deste lugar sou eu.

Fred, franzindo o cenho por causa do fedor, ajudou Marlon a se levantar. Ambos caminharam para o carro sem nada dizer. Marlon visivelmente perturbado, olhando para todos os lados, sua cabeça doendo, dores pelo corpo, tentando entender o que havia acontecido. Já tivera crises de ansiedade e pânico antes, mas nada havia se comparado a essa. Perder a consciência era novidade.

Chegaram ao carro, entraram e Fred deu a partida.

Estavam quase chegando ao final da rua sem saída quando Fred parou.

– Por que você parou? – disse Marlon, aflito. – Vamos dar o fora daqui.

– Você não está vendo, idiota? Tem um tronco no meio da rua.

– Como assim? Isso não estava aí quando chegamos.

– Para de fazer perguntas para as quais eu também não tenho resposta.

– Mas você ficou no carro esse tempo todo. Não viu ninguém?

– Como eu veria alguém nessa escuridão? E você? Não viu ninguém enquanto estava cagando?

– Está bom. Vamos parar com essa discussão idiota e vamos tirar logo isso daí. Eu quero ir embora daqui – a última frase saiu em quase um grito de súplica.

O tronco no meio do caminho se mostrou maior e mais pesado do que a visão inicial demonstrava. Impossível carregar.

– E se empurrássemos uma das pontas só para abrir espaço suficiente para o carro passar?

– Olha, o senhor Youtuber sabichão, explorador de freelancers, não é tão obtuso assim.

Conseguiram manejar uma das pontas do tronco empurrando em direção à calçada. Assim que terminaram, Fred pegou um cigarro e já ia acender quando Marlon lhe deu um tapa na mão.

– Você está louco? Não está vendo que estou desesperado para sair daqui.

– Calma. Preciso de um cigarro para aguentar esse fedor seu no retorno.

– Vamos embora agora, por favor. Você fuma no carro.

O ‘por favor’ fez com que Fred enxergasse o desespero e o medo estampados nos olhos de Marlon. Prontamente, jogou o cigarro fora e entraram no carro.

Marlon, um pouco aliviado por estar na segurança do carro, pegou o celular e foi checar algumas mensagens, provavelmente de seguidores cuja convivência próxima nunca existiu. Não esperava encontrar mensagem de um amigo ou familiar, há muito não se dedicava a essas relações. Entreteu-se por um tempo quando reparou que o carro não se movimentava. Olhou para o lado, já preparando a fala de reprovação à Fred, quando reparou que esse não se mexia. Fred estava com o corpo caído, os braços largados e cabeça jogada para o lado da porta. Marlon não via o rosto de Fred que estava enfiado na fissura entre o encosto do banco e a porta. O cinto de segurança afivelado. Por instinto, o apresentador se afastou já se preparando para fugir, mas resistiu a tentação. Cutucou Fred puxando-o pelo ombro direito. Com o movimento, a cabeça de Fred veio junto com o corpo para cima de Marlon revelando um rosto sem olhos, boca escancarada num sorriso de terror e sem os dentes. Fred estava morto.

O desespero de Marlon voltou à superfície tão rápido quanto uma boia.

Marlon olhou para fora do carro. Incontáveis seres assombrados se dirigiam para o carro. Pelo retrovisor, visualizou centenas de seres sujos, cabelos desgrenhados, encurvados com os pescoços esticados para frente revelando olhos arregalados de caçador se movimentando de forma lenta em sua direção. A porta do motorista foi aberta e mãos encardidas das assombrações humanoides começaram a adentrar o carro e puxar o corpo de Fred. Pelo retrovisor, Marlon viu Fred ser puxado para a praça onde foi encoberto por um grupo daqueles seres encardidos.

Enquanto assistia o desfecho de Fred, Marlon voltou à realidade quando sentiu mãos que o agarravam e puxavam. Tentou se desvencilhar, mas sem sucesso. O medo, o desespero, o cansaço e a sequidão na boca só pioravam o seu quadro. Esperneou, gritou, balançou os braços freneticamente, mas nada fora suficiente para se desvencilhar daquelas mãos. Marlon sentiu seu corpo ser erguido enquanto era levado de volta à praça. Acima dos seres, carregado, conseguiu distinguir silhuetas à sombra em várias das janelas do prédio ao lado da praça. Telespectadores da sua desgraça. Os moradores haviam aparecido, curiosos para com o sofrimento alheio.

– Socorro! Ajudem-me! Por favor! – disse, esperneando, gritando, balançando-se.

Apenas o silêncio como resposta.

O apresentador, ainda sendo carregado, jogou a cabeça para trás e de ponta-cabeça viu Fred dando partida no carro e indo embora. Como assim Fred ainda está vivo? O que está acontecendo?

– Fred, socorro. Não me deixe aqui.

Jogaram Marlon no chão em um nível abaixo do solo. Uma cova. Já estava totalmente nu. Suas roupas espalhadas pelo caminho da procissão macabra. As aparições começaram a enterrá-lo. Torrões de terra vermelha eram jogados para todos os lados. A visão de Marlon ficou um pouco prejudicada pela terra que caia no rosto, mesmo assim ele pode distinguir a silhueta do tronco da grande árvore central ao lado da cova. Livre das mãos encardidas, em um ato de agonia, ânsia e exasperação, o apresentador começou a escalar o buraco em direção ao tronco da árvore. Como um escalador treinado pelo medo e instinto, Marlon começou a subir na árvore. Escalou até o galho mais alto. O ponto mais alto que havia alcançado em toda sua vida. Olhou para baixo e lá viu as centenas de assombrações que o encaravam, a indignação estampada naqueles rostos.

Olhou para o horizonte como um capitão que estufa o peito para ostentar as medalhas e vislumbrou a lua surgindo atrás de um prédio. O brilho do luar transformando o medo em coragem, o desespero em satisfação, a angústia em alívio, a ansiedade em calmaria.

– Eu sou Marlon Abude – bradou para as criaturas abaixo.

Eu sou Marlon Abude e ninguém pode me subjugar. Ninguém pode me prender ou perseguir. Eu não sou uma fraude.

As pessoas que estavam na janela sob a escuridão começaram a aplaudir Marlon revelando seus rostos. Diziam: – Isso, você consegue. Você é amado. Você é único. Jamais te destruirão. Pule e enfrente os seus medos.

Mas Marlon estava cansado de lutar contra as centenas de assombrações que o perseguiam. Olhou para baixo e continuavam lá, centenas de seres assombrados, encardidos, unhas grandes e dentes podres, olhos arregalados, mãos ao alto implorando para o agarrá-lo e enterrá-lo vivo.

“Uma morte súbita é melhor do que o sofrimento de ser enterrado vivo.”

Assim, o apresentador, nu, se enrolando em cipós de Tradescantia zebrina, pulou.

***

Na manhã seguinte.

Havia chovido a noite toda. O chão da praça ainda enxarcado. As plantas reluziam belas sob o sol da manhã gratas pela água da chuva. Pequenas gotas de água presas às folhas refletiam a luz do sol criando um espectro luminoso ao redor da praça. Uma brisa leve balançava os galhos da árvore central propagando aquele barulho calmante de folhas ao vento. Transeuntes atravessavam a praça, uns apressados para o trabalho, outros apenas concluindo a sua caminhada matinal. Contudo, todos paravam curiosos para contemplarem a cena macabra que contrastava com aquela linda manhã na praça.

Um homem nu enforcado no galho mais alto da árvore central da praça. Uma cena pitoresca digna de um quadro bucólico renascentista.

Logo abaixo do corpo inerte, que seguia o balanço do vento, duas policiais anotavam no bloco de notas do celular o relato de um grupo de moradores de rua.

– Nós tentamos impedir o rapaz, mas ele estava louco. Parecia drogado. Esperneava e gritava, disparando socos e pontapés para todos os lados. Conseguimos prender ele no chão por um momento, mas ele se desvencilhou e subiu na árvore com uma destreza que nunca vi. Parece que já foi escalador – disse um dos moradores de rua.

– E vocês estão sempre por aqui? – perguntou uma das policiais.

– Sim. Aqui é o nosso ponto de encontro. “Acampamos” nesta praça. Aqui que montamos nossas barracas para passar a noite – respondeu um dos moradores de rua. – Foi uma cena horrível. Deu para ouvir o estalo do pescoço quando pulou.

– Esse não é aquele Youtuber do canal de histórias de terror? – resmungou a outra policial.

– Nunca ouvi falar – replicou a outra policial com desdém. – Somente você para se interessar por esse tipo de coisa.

– Se for mesmo quem eu acho, o fim dele daria um ótimo vídeo para o próprio canal, bastante trágico.

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Livro com capa de tons azuis escuros simulando ondas do mar. Na parte de cima da capa, em letras brancas grandes, está o título do lívro, Atos Literários, e logo abaixo os nomes dos autores e organizadores em letras brancas fonte Times New Roman.

Esse conto faz parte do projeto Oficina de Escrita Performativa organizado por Felipe Souza e Lucas Miyazaki, pesquisadores do departamento de Letras da USP. Esse projeto contou com a participação de nove escritores-artistas e gerou como fruto uma antologia de contos, publicado pela Desconcertos Editora com o título Atos Literários. No livro, disponível no site da editora, o leitor terá acesso a todo o processo criativo-performático por trás da escrita.


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Para quem chegou até aqui, eu me chamo Pedro Sucupira e sou um professor pesquisador em formação e curioso de um tanto que você não faz ideia. Amo estudar, não é à toa que não aguentei somente fazer o doutorado e já ingressei no curso de filosofia. Sou um descobridor, apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e tudo o que envolve ciência e saúde.


Se você se interessou por esse artigo, aqui, no meu blog, você encontra mais textos meus (resenhas, contos e artigos). No Instagram você me encontra como @pedrosucupiraa. No Skoob como Pedro Sucupira, lá você pode acompanhar todos os livros que já li e tenho lido. No Lattes você consegue ver todos os artigos científicos que já publiquei.


E caso queria conversar comigo, compartilhar ideias, experiências e críticas, basta me chamar no pdrohfs@gmail.com.


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