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  • Pedro Sucupira

O Quadro

Atualizado: 16 de out. de 2023

Carol é uma menina introvertida e sempre teve um controle admirável de suas emoções. A primeira impressão que passa é a de ser uma pessoa circunspecta, que esta sempre ocupada nos próprios pensamentos, porém quando se sente confortável, deixa se expressar sem medo.

É uma jovem mulher muito bonita para os padrões determinados pela sociedade. Longos cabelos pretos, pele clara e olhos cor de folha seca que variam sua tonalidade dependendo da luz do dia. Apesar de a maioria do tempo estar séria, nunca está emburrada ou carrancuda. Carol transmite um ar de tranquilidade, nada no mundo pode lhe incomodar. A todo momento parece que tudo está sob controle e que nada é capaz de lhe tirar desse equilíbrio, que para nós expectadores é opressor, pois nunca alcançaremos tal façanha na vida. Mas minha hipótese é a de que os pensamentos e as emoções são tantas que ela tem que focar maior parte de sua energia e atenção no processo de assimilação de tudo o que perpassa dentro de si. Um verdadeiro turbilhão. Um vulcão adormecido que pode explodir a qualquer momento. E é isso mesmo, quando menos esperamos, ela explode e quando isso acontece todos se assustam. Não julgamos ou falamos nada, pois aquele é o momento dela de se expressar.

Difícil encontrar alguém que não goste dela ou que reclame dela. No trabalho sempre elogiada, na família é a favorita de todos, a que todos sempre procuram, aliás, procuram até demais. Demandam demais dela e isso é algo que eu vejo que a esgota as vezes. Ela é sempre a que toma a frente dos eventos, que organiza as festas surpresas, viagens e as eventos comemorativas, porém isso não parece irritá-la. Ela demonstra que gosta, mas vai saber quais são suas verdadeiras emoções e pensamentos escondidos por trás de toda a seriedade que é o único que nos é proporcionado.

Ela parece um livro de suspense. Apesar de ter convivido com ela durante toda a sua vida – eu sou o irmão – eu não consigo descrevê-la para mais do que já foi falado. Ela ainda permanece uma incógnita para muitos e principalmente para mim. Eu sei que ela se abre aos poucos, primeiramente precisa ter certeza da confiança antes de se entregar, característica admirável. Contudo, isso pode afastar muitos, pois nem todos estão dispostos a esperar. Mas dane-se todos, ela é assim e quem gostar dela terá paciência para esperar. Eu que a conheço a 23 anos ainda estou esperando, imagine quem chegar agora.

***

Quando Carol decidiu que começaria a pintar ninguém se espantou. Ela sempre fora uma pessoa ágil no aprendizado das construções e artes manuais e era tão criativa que muitas vezes nenhum familiar entedia suas ideias.

Uma vez, de tanto ler sobre Da Vinci, Carol decidira se arriscar pelas artes da marcenaria construindo uma miniatura da casa que futuramente teria quando emancipasse. Ela exclamava:

– Se há cinco séculos atrás Da Vinci conseguiu se destacar, agora com toda a tecnológica disponível tenho maiores chances de construir algo muito mais grandioso.

Falava em voz alta e voltava para suas leituras. Ficou dias focada no seu projeto. E o resultado foi uma casa simples de madeira de reflorestamento de dois andares. A maquete tinha aproximadamente o tamanho de uma televisão de 32 polegadas, várias janelas e uma porta frontal e uma posterior. Por causa do tamanho chamava a atenção de todos que nos visitavam e todos os familiares, sem exceção, que passam em frente a maquete paravam e se sentiam na obrigação de elogiar e contribuir com suas críticas construtivas. Um falava “Ficou lindo. Essa menina tem o dom para a construção civil, mas eu acho que poderia ter sido menos quadrado e com mais cantos redondos tipo aquelas construções dos famosos arquitetos modernos.” Outro admoestava “Carol, você está no caminho certo, mas eu acho que poderia ter feito menor e eu teria usado madeira de cedro”. Era sempre assim, um elogio seguido de um comentário, ambos não solicitados, mas aceitos com educação. No final de semana logo depois que Carol terminara sua construção, mamãe organizou um almoço de família para comemorar o aniversário de um de seus irmãos e todos os parentes possíveis compareceram. Depois de tantos elogios seguidos de comentários, enquanto todos almoçava, Carol se levantou da mesa e desapareceu. Alguns instantes depois, o cheiro de queimado invadiu a casa e todos alvoroçados começaram a procurar a origem. Nos deparamos com Carol no fundo da casa e no chão uma pilha de madeira pegando fogo. Antes de qualquer fala, Carol se virou e asseverou:

– Pronto, agora sim está perfeita. Agradeço a todos que contribuíram – E voltou para a mesa.

Em outro episódio, não muito distante do primeiro, Carol enveredou-se pela arquitetura e resolveu reorganizar a casa. A designação de arquiteta ela mesmo se deu, mas desempenhava todas os papéis: projetista, desenhista, paisagista e executora. Até mesmo aprendeu a fazer desenho técnico. Organizou a disposição dos moveis de forma harmoniosa de acordo com a cultura oriental, fez paisagismo da horta e com as poucas suculentas e orquídeas que mamãe tinha. Foi uma semana de intenso trabalho para minha irmã. Trabalho que era acompanhado de barulho e de pedidos de licença, a todo momento. Em todos os quartos e cômodos ela queria se embrenhar e modificar. Foi aí que tivemos uma discussão, pois no meu território ela não teria influência. Decisão minha que a chateou muito. Mas fazer o que, os gostos dela não iam ao encontro dos meus. Apesar dos protestos, ela se contentou em ter todo o restante da casa pra si. Em todos os surtos criativos de Carol, mamãe e papai iam na contramão do mundo, não interferiam ou podavam, salvo quando envolvia risco de morte. Deixavam ela expressar seus sentimentos e criatividade. Aliás, que forma melhor de educar os filhos do que os deixar se expressarem criativamente.

Desde quando comecei a ter consciência mim e do mundo, papai recebia mensalmente um exemplar de uma revista de psicopedagogia revolucionária. Dizia-se que começou a receber logo depois que ele e mamãe se juntaram, mas não se sabia quem o remetente era. Por anos tentou-se redirecionar as revistas ao verdadeiro dono, porém nenhum destinatário fora encontrado. Como o assunto era do seu agrado, papai continuou lendo e acho que foi daí que ele aprendeu sobre educação. Uma vez, folheando uma de suas revistas, me deparei com uma reportagem abordando sobre como o sistema de educação tem assassinado – foi esse o termo usado – a criatividade das crianças e ensinava como evitar isso, criando crianças criativas.

Depois que a arrumação terminou, recebemos a visita de um vizinho, amigo de longa data de nossos pais. Como era comum sua presença em nossa casa, esse se mostrou possuir uma memória fotográfica exemplar, lembrava de cada modificação feita por Carol até melhor que nós mesmos, além de se autoproclamar profundo conhecedor de decoração. Foram horas e horas a se perder a conta, com pausas para os cafés e as refeições costumeiras, em que Carol lhe mostrava cada uma das mudanças, todas acompanhadas de explicações e recebidas e rebatidas com críticas de desagrado. Já a noite, depois desse dia exaustivo, Carol foi para a varanda, sentou-se na rede e entrou naquele seu estado de reflexão introspectiva. Com o rosto inexpressivo todos sabiam que internamente ela trabalhava fosse as emoções ou os pensamentos. Era sempre assim, um momento de intensa criação interna seguido de um momento de intensa expressividade, quando ela materializava tudo o que havia criado dentro de sua mente, e depois de concluída a obra e apresentada ao mundo, ela voltava aos pensamentos e ponderações.

Na nova empreitada pelas artes da pintura, foram quatro semanas de intenso trabalho. O quarto de hóspedes se transformou em ateliê aonde depois que ela se enveredava ninguém mais a veria o resto do dia, só sairia nos horários das refeições com os cabelos amarrados em coque, as mãos sujas de tintas e uma expressão de ‘dever cumprido’ estampada no rosto. Dessa vez não acompanhamos o processo de perto e a curiosidade nos corroía. Somente mamãe tinha os culhões de lhe dirigir a palavra na tentativa de descobrir algo.

– O que estas a fazer minha filha?

– Pintando um quadro.

– E o que vai ser? Uma paisagem?

­ – Uma obra de arte que causar-lhe-ás sensações nunca antes vividas, emoções inexplicáveis e uma pitada de terror.

– Mas do que se trata realmente?

– Vocês testemunharão em breve.

Mamãe estremeceu. Papai e eu nos entreolhávamos, os pelos do braço se eriçando em um arrepio. E assim terminava a conversa sobre o quadro e o assunto rumava para a política ou economia do lar.

***

Esquecemos da aventura artística de minha irmã.

Um dia, papai acordou com uma inquietação na mente a que atribuiu a falta de cultura e decidiu que iria ao teatro. Visitou cada um no seu território com um convite verbal carregado de eloquência e carência familiar, o qual mamãe e eu aceitamos de prontidão e Carol declinou com vários pedidos de desculpas e com a promessa de que se redimiria num futuro próximo. Era a primeira vez que deixávamos um para trás.

– Ela pediu para ficar – papai estava audivelmente magoado.

– Era só o que me faltava. E qual a razão para ela não querer ir?

– Falou que foi assaltada pela inspiração e não poderia desperdiçar o presente.

O teatro da cidade ficava a poucos minutos de caminhada de casa. Assistimos duas peças naquele dia e retornamos para casa sob a luz do por do Sol. Distraídos, com os anseios artísticos saciados, atravessamos a porta de entrada e ficamos paralisados; pegos de surpresa pela nova presença. Lá, na maior parede da sala, estava ele pendurado. Grandioso e imponente, sua presença poderia ser sentida de qualquer lugar. Mesmo se estivesse no canto mais escuro e escondido ainda assim atrairia olhares para si. Impossível não o notar. Nós três fomos andando a passos lentos na direção da coisa mais bela que já tínhamos visto em vida. O quadro era por demasia grande, quase tocava o teto e quase tocava o chão. Depois de todos aqueles acontecimentos, ainda permanece em mistério como foi transportado para lá. Naquele momento, essa era a menor de nossas preocupações. Não queríamos que nenhuma atividade cerebral fosse voltada para outro assunto. Aquele quadro merecia totalmente nossa atenção. Seria uma blasfêmia não proporcionar ao quadro tudo o que ele merecia e tudo o que lhe era por direito. Até a santa Trindade se surpreenderia com tal beleza majestosa. Até hoje não consigo descrever os sentimentos que eu senti. Depois de tempos observando aquele quadro os arrepios deixaram de me surpreender e perderam o sentido, eu acho que evoluía atingindo um novo patamar na evolução da espécie humana. Por trás de todo aquele deslumbramento havia o medo, o terror e a reverência que o quadro despertava em nós. Era perfeito em todos os sentidos tanto para o bem quanto para o mal. Ele caminhava nos extremos. Meu rosto queimava com o fluxo de sangue que inundava meu cérebro como uma enxurrada e oxigenava áreas nunca antes exploradas. Se o Homo sapiens utiliza apenas dez porcento de sua capacidade cerebral, naquele momento eu tinha alcançado o ápice. Enquanto isso, meus pés e mãos congelavam pela falta do sangue o que me forçou a sentar no chão caso contrário desabaria.

O tempo que se passou nunca consegui mensurar, poderiam terem sido minutos ou horas. Saindo por um momento do transe, olhei ao redor para me situar e também à procura dos meus. Mamãe se tornara uma estatua que milagrosamente chorava, o reflexo da luz do por do sol em seu rosto transformava as lágrimas em pequenas pedras de brilhantes que escorriam a passos regulares. Papai, não sei quando e como, havia arrastado sua poltrona para frente do quadro e sentado, com um sorriso imutável, contemplava não menos deslumbrado e maravilhado que nós. Eu não via Carol em lugar algum e toda minha preocupação fraternal foi posta de lado, pois nada mais importava, nada mais que eu ansiava a não ser contemplar o quadro.

Fomos arrebatados de nosso estado hipnótico pela voz de minha irmã que entrava na sala.

– E aí, o que acharam?

Incrédulos, nós três olhamos para ela ao mesmo tempo. Acho que até um sentimento de raiva nos tomou naquela hora. Como ela poderia ser tão apática a tudo aquilo? Nos sentimos incompreendidos pela falta de empatia de minha irmã. Com o tempo aprendemos que ela era imune aos efeitos de sua própria obra. Talvez essa fosse a maior a dádiva de um artista, não ser seduzido e ludibriado pela sua própria criação.

Mamãe foi a primeira a quebrar o momento de tensão silenciosa enquanto encarávamos Carol.

– Excelso e magnífico. Não há absolutamente nada e nem ninguém que se compara a esta preciosidade. Bendito seja, absolutamente único. Que maravilha de amor e temor que nos é proporcionada. Que os seus feitos, minha filha, sejam proclamados entre todas as nações da terra.

À medida que falava, mamãe se aproximou de Carol e a abraçou e nós a acompanhamos. Queríamos demonstrar a gratidão por termos a oportunidade de contemplar tão perfeita obra.

***

Os dias seguiram e parecia que não conseguíamos nos acostumar com a presença do quadro. Era uma tarefa árdua ter que deixá-lo de lado para focar no fazeres. Mas com o esforço e os protestos de minha irmã conseguimos. A vida voltara ao normal até que as visitas começaram.

Em um almoço de domingo alguns parentes foram convidados. Passamos mais tempo discutindo e vigiando o quadro do que comungando. Nenhum defeito, nenhuma crítica, apenas elogios à criadora e muitas vezes os elogios eram dirigidos ao próprio quadro como se estivesse vivo. A influência do quadro sobre cada indivíduo era subjetiva e peculiar, como o efeito de alguma droga alucinógena. Tia Ana, cujas famas de racional e cética a precediam, sentara-se ao lado do quadro com uma xícara de café e um longo monólogo se estendeu. A mesma passou a frequentar a casa diariamente; chegava, se acomodava ao lado do quadro e se largava de tanto falar, lágrimas e risos aos montes, o que a lhe fez bem, até sarou sua melancolia. Graças aos protestos de mamãe e a melhora visível de seu prognóstico, as visitas de tia Ana se tornaram esporádicas. Tio Bento nunca mais foi visto depois daquele domingo. Divorciado e com os filhos já criados tornou-se nômade digital. Mês passado estava em Bangkok e ontem diziam que rumava para Estocolmo. Mariana, prima de segundo grau, divorciou e se casou com José Euripedes, o vizinho, uma paixão antiga. Elaine, melhor amiga de Carol, largou a faculdade de Medicina e foi estudar Aquacultura. O antigo proprietário da casa, que sempre nos visitava quando estava na cidade, não conseguiu encarar o quadro por mais de alguns minutos e já saiu despedindo. Dois dias depois recebemos a notícia de que se matara. E foi assim, todos os que nos visitavam e conheciam o quadro ficavam deslumbrados e mudavam para o bem ou enlouqueciam de vez.

Todos nós, com exceção de Carol, fomos influenciados. Mamãe e papai se tornaram mais amorosos e piegas do que nunca. Ambos pediram conta dos seus antigos empregos e decidiram abrir o próprio negócio. Mamãe uma padaria e papai uma escola de idiomas. Eu também não escapei. Na época eu estudava para conseguir uma bolsa para um curso preparatório de diplomata. Larguei tudo e decidi virar escritor e cá estou eu.

E minha irmã, contemplava todo aquele alvoroço e dava gargalhadas para os desfechos bons ou soltava injurias ao vento pelos destinos menos agraciados. Um dia veio até o meu quarto se confessar.

– Licença irmão. Muito ocupado? – falou batendo na porta.

Eu estava na escrivaninha. Virei e fiquei encarando-a.

– O que lhe aflige irmã? Sua cara te denuncia.

Ela se jogou na cama com um suspiro e ficou encarando o teto.

– As vezes o sentimento de culpa me aflige e não me deixa dormir. O medo da incerteza, do que pode vir a acontecer é sufocante. Penso que devo destruir o quadro.

Uma pontada aguda de sofrimento me atingiu lá no fundo do peito. Na hora minha vontade foi de gritar “Como falas uma louca mulher. Tu falaste contra a coisa mais preciosa que já existiu”, mas eu me pus no meu lugar. O quadro não me pertencia e não cabia a mim o seu futuro, apenas consolar minha irmã e ser um apoio

– Por que pensas assim minha irmã? Aceitaste o bem com prazer, mas o mal não queres tu aceitar? Impossível desassociar os dois. Um sempre seguirá o outro. Onde há o bem sempre haverá o mal, mesmo que seja na mais ínfima das formas, e vice e versa.

– Tenho ciência desse infortúnio, é a vida na terra. Bem e mal, dois lados de uma mesma moeda. Irmãos gêmeos siameses. Unha e carne. Indissociáveis. No entanto, seria possível esconder para sempre um dos lados dessa moeda, extinguir um dos irmãos, descarta a unha e poupar somente a carne?

– O que lhe garante que o irmão poupado sobreviveria? Esconder um dos lados da moeda é o mesmo que o destruir? A unha não protege a carne? Você sabe aonde quero chegar.

– Eu compreendo. Meu dilema sempre foi retórico. O difícil é ter que aceitar a existência de ambos.

– Reconhecer a existência do bem e do mal é diferente de fazer o bem e o mal. Sempre haverá bem e mal no universo, mas é você quem determina em que sua vida se baseia. A sua obra é única e maravilhosa. Você a idealizou e foi capaz de materializar essa ideia. Agora, o efeito que ela causa nas pessoas não é obra sua, as decisões e ações dos indivíduos é de responsabilidade deles. O seu quadro acaba de entrar para a mesma categoria da pólvora, o avião, o dinheiro, a bíblia; uns usam para o bem e outros para mal.

– Obrigado irmão.

Carol se levantou e saiu. No outro dia estava enfurnada no ateliê novamente.

***

Com o passar dos dias, a notícia sobre o quadro se espalhou. Percebemos que a fama do quadro crescia quando desconhecidos começaram a bater na porta. Um, dois, três, até quatro visitas por semana foram fáceis de manejar. Quando visitas demais se tornou recorrente, aí o incomodo de receber estranhos em casa se tornou real e até motivo de debate.

– Não me agrada abrir a porta de nossa casa para desconhecidos – exclamou papai.

– Acredito que todos compartilhamos de seus sentimos, papai. Alguma sugestão? – disse Carol.

Mamãe, na sua vertente empreendedora disse:

– Vamos monetizar. Visitas pagas e com direito a guia.

– E transformar nosso lar em museu? – Carol protestou.

– Estamos mais para Meca do que Louvre – pontuei.

– Oxi! Peregrinações ocorrem por muito menos, estátuas de barro e pedaços de linho, por que algo tão magnífico não mereça também tal prestígio?

Essa fala de papai foi o juízo final. Todos concordamos e no dia seguinte começamos a construção da galeria onde o quadro seria instalado nos fundos da casa. Carol abandonou a pintura que estava em andamento e voltou ao seu estado de engenheira-arquiteta projetista e elaborou todo o projeto da galeria. O restante de nós seriamos os ajudantes.

***

Em nove dias tudo estava pronto. A galeria constituía de uma estrutura de madeira retangular com pé direito alto. Antes da entrada, no espaço de terra batida, havia uma pia de bronze onde todo visitante deveria lavar as mãos. Não tinha porta de entrada. No lugar, semelhante a um portão de grades grossas espaçadas, foram construídas cinco colunas quadradas douradas, esculpidas com formatos retangulares em alto relevo, dispostas em paralelo umas às outras, por onde uma pessoa podia facilmente atravessar. Logo atrás das colunas, uma cortina de linho vermelho pesada ia até o chão barrando a visão de quem estava de fora. Atravessando a cortina, o interior era composto por dois ambientes. Primeiro vinha uma ante sala onde do lado direto havia uma mesa retangular estreita com comidas e do lado esquerdo, ao longo da parede, sete luminárias de chão com lâmpadas de LED âmbar. No centro, no caminho que levava a outra sala, havia um incensário que Carol mantinha sempre aceso. Depois da ante sala, separado por uma cortina vermelha com detalhes dourados na barra flanqueada por duas colunas iguais as da entrada, havia uma outra sala onde se encontrava o quadro. Esse fora instalado bem no meio da sala sob um cavalete dourado, com holofotes instalados no teto e no chão direcionados para o quadro. E logo atrás do quadro havia a porta de saída.

Minha irmã havia criado não apenas uma área de visitação, mas sim uma experiência que gerou burburinhos e ajudou a espalhar mais ainda a fama do quadro. Em pouco tempo, a galeria tinha se transformado no que tínhamos profetizado, um lugar de peregrinação. O fluxo de pessoas era tão intenso que tivemos que aumentar o preço da visitação, o que se mostrou falho. Não importava o valor que cobrávamos, a quantidade de pessoas só aumentava. Pessoas dos quatro cantos do mundo vinham e iam.

Nossa vida transformara da água para o vinho. E que vinho oneroso e azedo. De início era divertido, a excitação da nova experiência, e depois se tornou uma obrigação pedante. Quando não suportávamos mais, estávamos a ponto de desistir de tudo, a solução para nosso suplício surgiu de onde menos esperávamos. Um dos visitantes daquele mês foi uma curadora do famoso museu de arte contemporânea Guggenheim e quando ela ofereceu uma residência, Carol aceitou, corroborado por nossos olhares de súplica, sem pensar duas vezes.

E assim a fama do quadro atingiu patamares internacionais.

***

Primeiro o Guggenheim. Depois Brandhorst, George Pompidou, Hamburger Bahnhof, Hermitage, Moderna Museet, Tate Modern, Louvre, Inhotim, museus de Arte Contemporânea de Tóquio, Shangai, Nova Iorque e tantos outros pelo mundo, e por onde passava milhares faziam filas para contemplar sua beleza.

Acompanhávamos a repercussão da viagem do quadro ao redor do mundo através do noticiário e também dos relatos que famosos, críticos, políticos e artistas publicavam nas redes sociais. Cada um tentando descrever da forma mais fidedigna possível sua experiência ao contemplar o quadro e como aquele encontro havia transformado sua vida. As boas novas chegavam aos quatro cantos do mundo, a multidão de fãs crescia e a de fanáticos também. Alguns clamavam que a obra era muito perfeita para ter sido feita por mãos humanas. Protestantes pregavam em púlpitos sobre como Carol fora inspirada por Deus, ou como ela fora possuída pelo Espírito Santo, ou como Jesus havia soprado no seu ouvido as diretrizes. Católicos também acrescentavam Maria na fila dos autores, e muitos pediam a canonização de Carol. Muçulmanos atribuíam a inspiração a Alá e Judeus a Yahweh. No final todos se irritavam quando Carol, em suas infinitas entrevistas, não atribuía ao divino ou sobrenatural a criação do quadro. Outros falavam de um pacto com Lúcifer e espíritas a alguma entidade. Os mais sensatos, feministas e os humanistas, defendiam a capacidade de Carol, mulher humana, como única possível autora da obra. Uma verdadeira guerra cultural e ideológica sobre quem seria o verdadeiro autor, debates e entrevistas com especialistas que o tempo de uma vida não seria suficiente para assistir.

Foi nesse interim que os protestos estouraram. Em vários países, principalmente os mais religiosos, líderes comunitários, religiosos, políticos e de várias frentes ideológicas organizavam protestos em prol do quadro e do que acreditavam a respeito deste. Artistas e simpatizantes, de cidades onde o quadro não passara, iam as ruas exigirem e suplicarem pela visita. Outros pediam o tombamento do quadro como patrimônio cultural da humanidade e que fosse instalado permanentemente nos seus respectivos países. Historiadores e antropólogos afirmavam que nem o Graal ou o Santo Sudário causaram tanta repercussão quanto o quadro. Estudiosos pessimistas temiam o pior e rumores de uma terceira guerra mundial começaram a rondar pelo mundo.

De tempos em tempos recebíamos uma ligação de Carol. Mamãe e papai que se detinham por mais tempo ao telefone preocupados e sempre demandando que ela voltasse para casa, como se em casa fosse mais seguro que em qualquer lugar do mundo. Trocávamos e-mails diariamente e minha irmã relatava suas experiências.

“Irmão,

Hoje encontrei com o Papa, um velhinho sisudo, enérgico e até que simpático. Falamos muito de religião e arte. Me senti à vontade; ele é um dos poucos fiéis que não foi contaminado pelo proselitismo cristão, suas ideias pessoais de reforma da Igreja não são para esse tempo. Acredito que ele não deva perdurar muito, progressista demais para o cargo. A rainha Elizabeth, aquela do Reino Unido, “NOS” convidou para um almoço no palácio de Buckingham – isso mesmo que você leu, todos os convites e cartas que recebo são direcionadas ao quadro primeiro e depois a mim, como se o quadro pudesse responder por conta própria – Eu respondi pedindo para mudar a data sugerida, pois já havia uma conferência agendada com Cyril Ramaphosa, o presidente da África do Sul, para a qual estou ansiosa.

Aquele sentimento de culpa ainda me importuna em alguns momentos. Em certas ocasiões olho para o quadro e me bate um terror. A presença dele me constrange, como se fosse um ser Rodiniano em constante ruminação mental, tramando para que tudo culminasse no cumprimento de sua vontade. Esses dias, andando na rua, vi uma folha de uma árvore caindo e a sensação de que a folha só estava caindo por permissão dele me amedrontou. Tenho medo do que pode vir a acontecer. Já passei horas em frente a ele, observando, tentando sentir o que todos sentem, mas o que vejo é somente uma pintura, que na minha opinião nem é tão perfeita assim. Será que eu coloquei amor e dedicação em demasia enquanto criava? Não há nada de sobrenatural.

Cheguei à conclusão que as pessoas colocam em objetos o amor que elas deveriam depositar em si mesmas; elas se culpam tanto pela vida miserável e medíocre que levam que não conseguem se amar propriamente. Uma lástima de profunda tristeza.

Tem dias que meus pensamentos não me deixam dormir. Talvez eu devesse investir na criação de algo que ensinasse o amor-próprio e a sabedoria. Mas antes de criar é preciso destruir. Focamos demais com o criar e esquecemos do destruir. A destruição é necessária. É preciso destruir o supérfluo, dispensável, inútil e criar espaço para a construção de algo novo.

Preciso ir agora irmão. Te atualizo em breve de tudo.

Beijos,

Carol”

Esse e-mail chegou acompanhado de algumas fotos de minha irmã pelo mundo. Estar melhor seria impossível. Aquele ar de tranquilidade sólita característico de Carol era presente aos montes em cada foto. Questionei a veracidade das emoções transmitidas nas fotos, mas descartei a possibilidade de dissimulação. Apesar de tudo o que acontecia ao redor do mundo consequência de sua criação, minha irmã permanecia a mesma. Eu sabia que por trás daquela tranquilidade havia um turbilhão de pensamentos e emoções. Águas calmas são as mais profundas. Ainda estava para nascer uma pessoa tão emocionalmente ágil e inteligente quanto ela. Suas principais preocupações externadas em nossas conversas virtuais nunca eram para com a ação dos outros, mas no âmago eram para com suas próprias ações e como elas poderiam influenciar o mundo.

Estávamos com saudades. Naquela noite fui para cama com o presságio de que veríamos Carol mais cedo do que imaginávamos.

***

O dia amanheceu ensolarado deste lado do mundo. Os protestos diminuíam em proporção e quantidade, os remanescentes continuavam intensos e perigosos. O mundo se cansava da balbúrdia e pedia uma trégua.

Tivemos um vislumbre de paz que logo se extinguiu. Do outro do lado do mundo, Kim Jong-un, líder supremo da Coreia do Norte, exigia a posse do quadro senão atacaria.

***

Na semana seguinte Carol voltava para casa. O quadro havia desaparecido.

Como? Ninguém sabia.

Quem? Suspeitos não faltavam.

Desde nações inteiras até cidadãos comuns. Qualquer um poderia ser o responsável pelo desaparecimento – ou o maior roubo da história como alguns proclamavam; os mais absolutistas chamavam de ataque terrorista. O quadro desapareceu no momento em que era mais ambicionado. Estava sendo exposto nos países baixos. Um dia estava lá e no outro não estava mais. Nenhum rastro, nenhuma pista. O ladrão era dos bons. Talvez um caso para Sherlock ou certamente Hercule Poirot ou para juntos resolverem. Um ótimo tema para um romance Agathiano.

Carol chegou e foi direto para o quarto, disse que precisava descansar. Pediu que dispensasse qualquer repórter e que mais tarde nos daria um relatório.

Quando acordou, mamãe, papai e eu estávamos todos à mesa, ansiosos e curiosos. Encarávamos ela esperando algum comentário. Carol se sentou, se serviu com café e quebrou o silêncio:

– Eu queimei o quadro.

O silêncio ficou mais pesado que antes. A incredulidade estampada nos nossos rostos. Antes de qualquer protesto, eu falei, mais direcionado à papai e mamãe:

– Direto seu. O quadro era uma criação sua e pertencia a você o destino dele. Não é mamãe e papai?

– Sim. Sim – ambos, pouco convencidos, concordaram.

– Espero que compreendam – disse Carol. – Hoje vou ao mercado comprar argila. Estou com uma ótima ideia para uma escultura. Alguém me acompanha?

Mas antes de sairmos, algo ainda nos incomodava e mamãe teve a coragem de perguntar.

– Como você levou o quadro para a sala?

Carol deu de ombros e assim fomos todos ao mercado.

Fonte foto de capa unsplash.com

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Para quem chegou até aqui, eu me chamo Pedro Sucupira e sou um professor pesquisador em formação e curioso de um tanto que você não faz ideia. Amo estudar, não é atoa que não aguentei somente fazer o doutorado e já ingressei no curso de filosofia. Sou um descobridor, apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e tudo o que envolve ciência.


Se você se interessou por esse artigo, aqui, no meu blog, você encontra mais textos meus (resenhas, contos e artigos). No Instagram você me encontra como @pedrosucupiraa. No Skoob como Pedro Sucupira, lá você pode acompanhar todos os livros que já li e tenho lido. No Lattes você consegue ver todos os artigos científicos que já publiquei.

E caso queria conversar comigo, compartilhar ideias, experiências e críticas, basta me chamar no pdrohfs@gmail.com.

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