O Gato
- Pedro Sucupira
- 7 de fev. de 2021
- 10 min de leitura
Atualizado: há 52 minutos
Naquela cidade, os invernos eram claros e secos, com uma luminosidade impiedosa que denunciava o pó e os telhados gastos. O frio do dia era suportável, às vezes até agradável, como são algumas dores leves, que nos fazem lembrar que estamos vivos. Já o frio da noite era de outra ordem: esse não se contentava em entrar pelas frestas, não; tomava posse do corpo, dos ossos, e desafiava até aqueles que tinham, por sorte ou acaso, onde se abrigar.
O menino percorria diariamente o trajeto de ida e volta da escola com uma disposição invejável. A bicicleta era seu cavalo de guerra, e o suor, embora presente, era um tributo menor, e, ao que parece, ignorável, diante da sensação de liberdade. Contudo, era inverno, e como todas as estações, essa também trazia consigo seus terrores. Havia o espectro da gripe, a ameaça constante de uma pneumonia, inimiga sutil, dessas que espreitam o incauto. O menino, precavido, mantinha-se hidratado e fiel às vitaminas, como um soldado ao seu protocolo. Afinal, não desejava o mesmo fim da família, cuja ausência o tornara, para dizer pouco, cauteloso em demasia.
Naquele dia, igual a tantos outros, ou assim parecia, o menino retornava da escola pelo mesmo caminho de sempre. Aproximava-se da longa ponte e já calculava, como era de seu costume, os semáforos, faixas, placas, e os pedestres que transitavam tanto sobre quanto sob a ponte, quando algo, um fragmento de acaso, desviou-lhe o olhar. No extremo oposto da travessia, ao pé do barranco, à beira do rio — esse mesmo rio que já não corria com a força de outrora —, repousava uma caixa. E dentro dela, com a resignação dos que nada podem, um filhote de gato.
Ainda em movimento, o menino desviou o olhar como quem não vê, e logo tratou de recompor o foco, que é uma virtude e um instinto de sobrevivência. Afinal, a vida, especialmente a própria, é bem de valor superior. A travessia continuou como se nada houvesse ocorrido, como se a tal caixa fosse apenas mais um detalhe no cenário urbano, um eucalipto entre tantos em uma área de reflorestamento qualquer. Seus pensamentos, regimentados como soldados em desfile, marchavam apenas entre dois objetivos: alcançar o quarto e cumprir o dever de casa.
Mas, como nem tudo na vida se submete à vontade, quando chegou ao outro lado da ponte, ouviu, ou julgou ouvir, um som que, se dependesse dele, jamais teria escutado. Um miado. Não desses miados corriqueiros, preguiçosos, de gato satisfeito. Não. Era um miado agudo, trêmulo, desesperado, o clamor de uma pequena criatura que, perdida e doente, invocava socorro, suplicava por proteção, lamentava o sumiço dos seus.
A mente, até então disciplinada em seu itinerário de desejos imediatos — alcançar o quarto, cumprir o dever, talvez repousar —, fora subitamente desviada de seu rumo habitual. Não se tratava, diga-se, de um desvio qualquer, desses que a razão logo corrige com um aceno de desprezo; era um desvio impregnado de um som. Um miado, como já se disse, mas não desses vagos, que se perdem no ar e logo são esquecidos, e sim um lamento insistente, agudo, quase humano, como se a própria miséria reclamasse por atenção.
Num impulso que nem mesmo sua prudência conseguiu deter, o menino largou a bicicleta no chão e correu até o parapeito da ponte. A vista era a mesma, a caixa, o filhote, mas agora outros detalhes se impunham com uma clareza desconcertante. A caixa de papelão, já úmido nas bordas inferiores, parecia desintegrar-se lentamente, como se o tempo, em conluio com a água do rio, conspirasse contra o pequeno ocupante. O filhote, branco com manchas acinzentadas, girava em círculos dentro da prisão de papel, os olhos desmesurados de pavor, a voz rouca de tanto clamar.
Tudo aquilo, por razões que nem o próprio menino saberia explicar, suspendeu o mundo. Não se lembrava da bicicleta, do quarto, da lição de casa, sequer de si. O tempo, que costuma ser senhor de todas as decisões, parecia agora ter feito uma pausa, permitindo-lhe observar aquela cena com a fixidez de quem contempla um quadro. Durante aqueles instantes, que não se poderiam medir por relógios, houve apenas a caixa e o filhote. E mais nada.
O que se passou em seguida foi quase uma reação instintiva, e, como todas as reações desse tipo, logo veio acompanhada do remorso. O menino recuou dois passos. A bicicleta? Ainda ali. A mochila? Zíperes intactos. A estrada? Livre. O peito, que até então ardia numa arritmia silenciosa, retomava o compasso usual. A realidade, como uma velha conhecida, voltava ao seu posto, chamando-o à razão e à cautela.
Voltou à bicicleta com rapidez, não sem antes lançar mais um olhar à caixa e ao miado, que agora lhe pareciam distantes, quase irreais, como um sonho do qual se desperta sem saber se o viveu ou apenas temeu. Atravessou a ponte com passos firmes e, durante o restante do trajeto, esforçou-se para ajustar o pensamento, que teimava em retornar à beira do rio. Pensou nas possíveis consequências de uma decisão jamais tomada. E, sem confessar, sabia que não fora por indiferença que partira, mas por algo mais fundo, um medo antigo, talvez, de tornar-se vulnerável.
***
Chegando em casa — termo ainda impreciso, pois casa nem sempre é abrigo —, o menino adentrou pela porta dos fundos, atravessou a cozinha como quem busca não ser notado e seguiu rumo à sala de estar. Da entrada até ali, cada passo era mecânico, estudado, como se ensaiado inúmeras vezes. Ao elevar a voz para o cumprimento, fê-lo com uma hesitação discreta, mas presente, consciente de que uma única palavra mal escolhida poderia converter a tarde em sessão de terapia.
— Boa tarde, senhora... Não... tia... me desculpe — murmurou, corrigindo-se de pronto, como quem reconhece um crime e espera indulgência.
A mente, sempre vigilante, registrava: “Por que sempre me esqueço de tratá-la como me é pedido? Ela tem feito tanto por mim, e o mínimo que posso oferecer é o tratamento que deseja. Chamá-la de tia não nos aproxima, mas é uma pauta a menos com a doutora Susane. Menos conversas, menos exposição. Mais celeridade no que chamam de cura.”
Do outro cômodo, a resposta veio com pontualidade, não sem certo desvio dos olhos, que, naquele instante, preferiram as estantes ao sobrinho.
— Boa tarde, sobrinho. O almoço logo estará pronto. Te aguardo — disse, retomando Malinowski com a compostura de quem lê mais para esquecer que para saber. No íntimo, contudo, indagava: “Por que ainda o chamo de sobrinho se o laço é mais convenção que afeto? Relações, mesmo as de sangue, não se constroem à força. Espero que isso esteja nas conversas com a doutora Susane. Eu mesma poderia abordá-lo, mas a adolescência — principalmente as tortuosas — foge da minha alçada.”
— Sim, tia. Preciso apenas tomar banho e organizar meu cronograma — replicou o menino, com o tom de quem enuncia um dever religioso. Disciplina, esforço, pragmatismo, virtudes que, acreditava, bastariam para chegar a qualquer lugar, ou ao menos, sair de onde estava.
Subiu as escadas dois degraus por vez, como quem busca vencer o tempo, ou talvez fugir dele. No andar superior, havia apenas dois quartos, dispostos com simetria quase obsessiva: cada um acessado por escadas opostas, portas centradas, medidas rigorosas. O menino certificara-se disso com régua em mãos nos primeiros dias. Havia algo de tranquilizador na simetria, algo de justo. Deleite para uma mente que via no caos um inimigo.
Antes de entrar no quarto, estacou no batente. Olhou, como tantas vezes antes, para a parede azul-clara do quarto vizinho — o da tia —, marcada por linhas lilases que formavam um labirinto. Um traço decorativo, talvez, mas que sempre lhe parecia carregado de intenção. Jamais encontrara a saída daquele desenho, e por vezes questionava se havia entrada. “Essa casa ainda me inquieta — pensou. — Mas hoje não é dia para enigmas. Preciso focar. Estou atrasado.”
Entrou, largou a mochila ao lado da escrivaninha e foi até a janela, fechando as cortinas com o zelo de quem teme olhares invisíveis. Apreciava a luz, era certo, e a vista do jardim lhe era grata, mas a privacidade valia mais. A luz, afinal, revela. E nem sempre se quer ser visto.
Girou sobre si, observando o quarto como se o visse pela primeira vez. Pé-direito alto, paredes alaranjadas, cama ampla com cabeceira escura, guarda-roupa de madeira clara, espelho com moldura dourada, a escrivaninha amarela em L. Tudo harmonioso, quente, até. Mas frio. O espaço, demasiado, criava uma fronteira tênue entre solitude e solidão, linha essa que o menino atravessava sem perceber, ou sem poder evitar. “Hoje não quero ficar sozinho — concluiu. — Qualquer companhia serviria. Já afastei a todos. Hoje, preciso agir. Hoje, não posso.”
Agitado, iniciou o ritual do banho. Tentou tirar os sapatos equilibrando-se sobre um pé, quase tombou. Desabotoou a camisa e deparou-se com a cicatriz no peito, aquela que carregava não apenas na pele, mas em todos os silêncios. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, como se a memória emergisse do fundo do tempo. “Filhote de gato miando.” O pensamento brotou sem convite.
— Eu não me importo com ele — sussurrou, já em defesa. — Apenas mais um animal abandonado. Provavelmente fruto de uma gata de rua, ou descuido. O dono, incapaz de cuidar, tentou se livrar. Tentou matá-lo.
A mente, revoltada com tamanha exposição, ordenou o retorno à ordem. Não era hora para divagações. Consultou o velho relógio sobre a escrivaninha, um presente da avó, herança de um tempo mais indulgente. Onze e meia. Não havia tomado banho.
— Santo Deus... — murmurou. E logo: “Deus existe?”
Entrou apressado no banheiro, ligou o chuveiro e, ao sentir a água, lembrou-se da caixa úmida. “Filhote de gato miando.” Outra vez, o pensamento insistente.
“Não sou quem deve ajudar. Preciso de ajuda, ou não? Já sobrevivi aos piores dias. Os que virão serão fáceis. Um filhote? Não faz sentido. Leite ou ração? Minha tia me daria dinheiro? Claro, olhe o tamanho desta casa. Senão, vendo algo meu. Imaginar-me cuidando de um gato... hilário. Desesperador. Não sou paternal.”
O peito apertava. A taquicardia retornava, sutil e incômoda. “Preciso parar. Preciso focar no banho. Deveres me aguardam. E minha tia não aprecia atrasos.”
***
O almoço era servido na mesa da cozinha, por imposição da tia, que intuía, talvez ingenuamente, que o espaço menor propiciaria aproximação. Cria que a proximidade física geraria familiaridade. Contudo, os fatos, esses ingratos, insistiam em contrariar tal esperança. A cada tentativa da tia de estreitar os laços, correspondia, como que por reflexo, um distanciamento mais nítido do menino. Ainda assim, ela persistia: estudava, conjecturava, armava pequenas estratégias que, com sorte, talvez um dia surtissem efeito.
O menino desceu as escadas com a pressa que se reserva às fugas e, ao chegar à mesa, notou os pratos azuis e os talheres pesados, sempre os mesmos. Sentou-se com visível tédio e, sem preâmbulo, comentou:
— Acho inúteis esses pratos azuis.
A tia, sem levantar os olhos do prato, onde se ocupava em retirar a gordura de um bife com a minúcia de quem opera, respondeu com a calma de quem já vivera muitos inúteis.
— Não é porque você não gosta de pratos azuis que devam ser considerados inúteis. O gosto é assunto subjetivo, e até mesmo os mais destoantes merecem respeito. Desprezar o gosto alheio afasta, impede que o outro se aproxime dos seus. O desprezo, meu caro, torna-se barreira à aculturação. E, convenhamos, se todos gostassem do mesmo, que seria do rosa?
Terminou a frase e, em pensamento, refletiu sobre si mesma: “Mais uma conversa encerrada em sentença. Por que tanta rigidez analítica? Talvez devesse pintar meu quarto de tons mais quentes. Quem sabe assim me tornaria mais receptiva.”
O menino ouviu, refletiu, mastigou, e, fixando os olhos no prato, onde, com pouco jeito, tentava imitar o movimento da tia sobre a gordura do bife, perguntou:
— Por que devemos ajudar outra pessoa?
A tia arqueou as sobrancelhas. Não esperava pergunta alguma, muito menos à mesa. Respirou, recompôs-se, e respondeu:
— Ajudar, creio eu, é instinto. Vai além da caridade. É simpatizar com a situação alheia, sem que isso seja uma incumbência divina, que, confesso, me desagrada. Não deveríamos ajudar por obrigação, tampouco por promessa de recompensa, seja ela celeste ou terrestre. Isso não é altruísmo, é negócio. A ajuda genuína relaxa, alivia. O corpo, inundado de endorfina, responde com prazer. Quando é verdadeira, claro. O corpo não mente.
O menino ergueu os olhos, agora atentos.
— Então, se eu ajudar um animal indefeso, como um filhote de gato, quer dizer que minha ajuda é verdadeira, já que ele nada poderia me oferecer em troca?
A tia sorriu, quase imperceptivelmente.
— Boa observação. Sim, ajudar um animal é um excelente início para treinar empatia. Você viu algum que precise de ajuda?
— Hoje, voltando da escola, vi um filhote de gato numa caixa, debaixo da ponte. Miava alto, agudo, como quem clama. No momento, não me preocupei. Mas não consigo parar de pensar nele. O que você aconselharia? Deveria ajudá-lo? Com certeza foi abandonado. Ninguém o quis. Por quê?
— Só você pode responder. Criar um animal demanda compromisso. A maioria das pessoas só precisa de ajuda momentânea. Um animal, não. Requer atenção diária, cuidados constantes. Será sua responsabilidade. Isso distingue o socorro ocasional do compromisso contínuo. Embora nunca tenha criado um animal, sei que gatos são mais independentes. Gosto mais de gatos do que de cães. Cães me lembram... meu último cônjuge — disse, com ironia suave. — Emoções demais. E a dependência, essa me exaure.
Fez uma pausa e, olhando-o de soslaio, inquiriu:
— Quando me pede conselho, não está, na verdade, pedindo permissão para criar o gato aqui?
— Sim. Se não for incômodo — respondeu, abaixando o tom e os olhos. — Posso pegá-lo para mim? Ele me faria companhia. Sei lá...
Hesitava. Nunca haviam chegado tão longe numa conversa. Nunca pedira nada. Esperava o “não”, já se preparando para recebê-lo com a resignação dos que não criam. E se ela negasse? Pensava em argumentar, insistir, explicar que era importante. Mas antes que pudesse articular qualquer nova súplica, soltou:
— Quando vi o gato, me vi nele. Um filhote só, perdido. Lembrei do dia em que vim morar aqui. Chovia muito. Quis gritar, mas temi te incomodar. Chorei em silêncio até não haver mais lágrimas.
Fitou-a. No rosto, a angústia exposta. Vulnerabilidade. Um pedido, não só pelo gato.
A tia, impassível na expressão, rejubilava por dentro. Pela primeira vez, vislumbrava algo próximo de vínculo. Deixando o cálculo, respondeu, tentando ser espontânea:
— Claro que pode. Mas será sua responsabilidade. Traga o filhote. Levaremos ao veterinário. Esta casa não é lugar para seres doentes.
O menino ergueu-se com tal presteza que a tia sobressaltou-se. Saiu correndo rumo à garagem, tomado por um único pensamento: “Que ele ainda esteja lá. E bem.”
Na penumbra da garagem, junto à bicicleta, uma caixa. Não úmida. Dentro, o filhote. O menino deteve-se, observando-o. Bebia leite de uma tigela que providenciara. O tempo que levara para descer o barranco, resgatá-lo, abrigá-lo... parecia impossível. Sorriu. Pensou no risco que correra e esperou, como de costume, a taquicardia que lhe assaltava após o perigo. Mas, ao contrário, sentiu o corpo relaxar. E, então, sorriu de novo — desta vez, inteiro.
Fonte foto de capa unsplash.com
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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