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  • Pedro Sucupira

O Gato

Atualizado: 2 de ago. de 2022

Naquela cidade, os dias de inverno eram claros e secos. O frio do dia era tolerável, as vezes até agradável, o da noite desafiador até para os que habitação tinham. O menino percorria o caminho de ida e volta da escola com mais prazer e o suor depois de pedalar era a menor das preocupações. Todavia era inverno e como todas as estações esta vinha acompanhada dos seus terrores. O medo da gripe que poderia evoluir para uma pneumonia era motivo suficiente para se manter hidratado e com as vitaminas em dia. O menino não queria ter o mesmo fim de sua família, por isso se tornara por demasia cauteloso.

Ele voltava da escola pelo mesmo caminho de sempre. Estava próximo de atravessar a larga ponte pela ciclovia, pedalando atento aos semáforos, faixas, placas, pedestres acima e abaixo da ponte, quando, de repente, ele avista no outro extremo da ponte, no pé do barranco, à beira do rio, uma caixa e dentro dela um filhote de gato. Ainda em movimento, desvia a atenção da caixa, tentando ignorá-la, para olhar mais uma vez ao seu redor e retomar o controle, pois sua vida lhe era mais importante.

O menino continuou pedalando, a travessia da ponte seguia como se nada diferente tivesse sido notado, a caixa e o seu conteúdo foram apenas mais um eucalipto em uma área de reflorestamento. Seus pensamentos transitavam entre somente duas preocupações: chegar no seu quarto e fazer o dever de casa. Ao alcançar o outro extremo da ponte escuta o que, no mais íntimo do seu inconsciente, não queria ter escutado: um miado agudo. Um miado de uma criança indefesa e doente que clama por socorro, por proteção e que se angustia com o sumiço dos familiares mais próximos.

Sua mente, que até aquele momento percorria apenas por um caminho ligando a ânsia por alcançar a segurança do quarto e a ânsia por cumprir com o dever diário, para ao se deparar com uma nova rota criada por aquele miado. O menino desceu da bicicleta apressado, os olhos arregalados, foi até o parapeito da ponte, olhou por cima e se deparou com a mesma caixa na parte mais baixa do barranco à beira do rio com o filhote de gato dentro. Porém desta vez a mente rápida e observadora do menino captou detalhes antes desconhecidos. Uma caixa de papelão de tamanho médio, grande o bastante para o filhote de gato branco com grandes manchas acinzentadas não conseguir trespassar. Ele observa que o fundo da caixa já estava úmido, um detalhe antes oculto que estimulou a mente do menino e novas conexões começaram a serem criadas. – O miado alto e agudo por medo da água e da incapacidade de o filhote não conseguir sair de dentro da caixa.

Poder-se-ia dizer que a caixa de papelão e o filhote de gato realizaram um milagre de empatia e compaixão uma vez que o menino de tudo ao seu redor e, o inesperado, de si próprio se esqueceu e por alguns instantes apenas observou aquelas duas entidades. Absorveu tanto aquela imagem que sua mente começou a se inquietar – nunca antes tinha sido tão inconsequente. Seu inconsciente precisava agir, estava distraído e exposto, correndo riscos. Então, como uma avalanche, as preocupações voltaram. Apertando o guidom e com uma leve e contínua taquicardia respirou fundo ao perceber o quão descuidado tinha sido. Olhou ao redor, certificou que a bicicleta ainda estava ali, verificou os zíperes da mochila, lembrou do quarto e das tarefas e com agilidade montou a bicicleta e retomou o caminho de volta.

Os minutos restantes da viagem foram suficientes para que os ritmos fisiológico e psicológico voltassem aos seus estados normais. Ajeitou as ideias na mente conjecturando os possíveis desfechos da decisão que tomara.

***

Chegando em casa, o menino entrou pela porta dos fundos que dava para a garagem, passou pela cozinha e foi em direção a sala de estar. Elevando voz a um tom audível, cumprimentou sua tia que, certamente, estaria na sala-escritório adjacente sentada na poltrona divã chaise longue cor verde-musgo lendo algo sobre Malinowski e seus tão preciosos Argonautas.

– Boa tarde, senhora... Não... tia... me desculpa – disse o menino. ­– Por que sempre me esqueço de tratá-la como me é pedido? Ela tem feito tão bem para mim e o mínimo que eu poderia oferecer seria o tratamento que ela deseja. Eu sei que chamá-la de tia não nos tornará mais próximos, mas será uma pauta a menos a ser discutido com a Dra. Susane e quanto menos discussões, mais rápido será o tratamento.

– Boa tarde, sobrinho, o almoço logo estará pronto, te aguardo ­– respondeu a tia desviando os olhos do livro e fitando as estantes. – Por que mesmo sendo tão artificial eu continuo o chamando de meu sobrinho? Ele já é maduro o suficiente para saber que relações próximas, mesmo entre consanguíneos, não são construídas a base da força e demandam tempo para se tornarem verdadeiras. Espero que esta seja pauta das conversas com a Dra. Susane. Eu mesmo poderia abordar isso, mas a adolescência, principalmente as complexas, foge da minha alçada.

– Sim, tia, somente preciso tomar banho e organizar meu cronograma. – Disciplina, pragmatismo e esforço consciente, as qualidades suficientes para se chegar aonde quiser, por isso preciso me organizar. Assim o menino seguiu em direção ao seu quarto subindo as escadas dois degraus por vez.

No andar de cima havia apenas dois quartos e o acesso para cada um deles se dava por escadas diferentes. A escada da direita dava acesso ao quarto do menino. Escadas e portas tinham sido construídas no centro exato das paredes. Nos primeiros dias que havia se instalado na nova casa, intrigado e também cético com relação a simetria, o menino até chegou a tirar as medir da distância entre as portas e as paredes dos lados de ambos os quartos e confirmou que eram iguais. Simetria era deleitante.

Antes de entrar no quarto, o menino parou no batente da porta e olhou para trás na direção da parede externa do quarto, da tia, o da esquerda, e como já havia feito repetidas vezes, reparou nas linhas lilases desenhadas sobre o fundo azul claro que formavam um labirinto cujo caminho interligando entrada e saída ele não havia identificado. – Essa casa ainda me inquieta, mas hoje não é dia para tentar encontrar a saída, preciso focar, já estou atrasado. – Terminou de atravessar a porta e tirou a mochila, a qual depositou no chão ao lado da escrivaninha, e seguiu em direção a janela para fechar as cortinas. Apreciava muito a luz do dia e a vista que dava para o jardim, mas prezava muito mais pela privacidade. As cortinas só permaneciam abertas quando tinha certeza da solitude. Fechou a cortina e girou o corpo no sentido anti-horário olhando ao redor, ainda se acostumando àquele ambiente com pé direto alto, paredes da cor laranja, uma cama king size com uma cabeceira feita de madeira escura e flanqueada por duas mesas de cabeceira feitas da mesma madeira, um guarda roupa com quatro portas de correr feito de madeira castanha clara, um espelho retangular com moldura cor ouro envelhecido duas vezes o seu tamanho e a escrivaninha em forma de L amarela. Apesar de todo idealizado com cores quentes, aquele quarto ainda lhe parecia frio e distante. Um quarto espaçoso, porém todo o espaço que sobrava criava uma linha tênue entre solitude e solidão que o menino sempre atravessava. – Hoje não quero ficar sozinho. Uma companhia, qualquer companhia, seria muito bem-vinda. Até o momento tudo o que fiz foi afastar todos e hoje preciso agir, mudar esse cenário. Hoje não quero ficar sozinho.

Ainda agitado, o menino começou a se preparar para o banho. Iniciou pelos sapatos pretos que compunham o uniforme escolar. Se equilibrando no pé direito enquanto tentava com as duas mãos tirar o sapato do outro pé, quase se desequilibrou por completo e caiu. Retomou o equilíbrio e continuou. Ao desabotoar a camisa se deparou com a cicatriz no peito, um calafrio percorreu todo o seu corpo e todas as lembranças que essa carregava lhe vieram à tona trazendo também consigo o pensamento ‘filhote de gato miando’Eu não me importo com ele. Apenas mais um animal abandonado. O dono deveria ter outro gato fêmea que escapou e reapareceu prenha. Como não seria capaz de cuidar de todos os filhotes que nasceram, anunciou para adoção, mas este ninguém quis ajudar e a única solução encontrada pelo dono foi o abandono. Verdadeiramente foi uma tentativa de assassinato já que o filhote de gato foi jogado à beira do rio sem nenhum amparo.

Forçou a mente a focar no que deveria ser feito, não era o momento para devaneios e suposições sem evidências. Consultou o relógio antigo, presente de sua avó, que tiquetaqueava em cima da escrivaninha.

– Santo Deus! ­ – Deus existe?

Já eram onze e meia e nem havia tomado banho ainda. Entrou às pressas no banheiro, ligou o chuveiro e entrou de corpo inteiro debaixo d’água. Por associação, a umidade no corpo lhe fez pensar na caixa de papelão úmida e mais uma vez o pensamento ‘filhote de gato miando’ emergiu do inconsciente. – Admita que você não é a pessoa mais adequada para ajudar alguém quando você é quem precisa de ajuda. Não, você não precisa de ajuda. Já sobreviveu aos seus piores dias, os que estão por vir serão fáceis. Primeiro, trazer um filhote de gato para uma casa que não é sua não é algo muito sábio. Como se cuida de um filhote de gato? Será que ele toma leite ou já come ração, ou teria eu que todos os dias misturar leite à ração? Minha tia me daria dinheiro para comprar ração? Claro que sim, olha o tamanho desta casa, comprar um punhado de ração não seria um problema. Do contrário, eu poderia vender alguns pertences meus. Imaginar-me cuidando de um gato é hilário e desesperador. Não sou nada paternal – O menino começou a ter uma leve e contínua taquicardia. – Meus devaneios sempre me levam para o mesmo estado de angústia inquietante que me paralisa. Preciso parar de ficar divagando e focar no banho, tenho deveres a serem feitos e minha tia não é muito adepta a atrasos.

***

O menino e a tia almoçavam na mesa da cozinha, decisão imposta pela tia que pressupusera que a mesa menor proporcionaria um contato mais próximo e tornaria o ambiente mais familiar. Apesar desse e de outros esforços, não era isso o que vinha acontecendo. Parecia que quanto mais a tia tentava se aproximar mais o menino se afastava; todavia, a tia persistia se questionando, pesquisando, empenhando-se em encontrar maneiras eficazes de mudar todo aquele quadro.

O menino desceu as escadas correndo e chegou à mesa e notou os pratos azuis e os talheres pesados de sempre. Enquanto se sentava, com um tom de desdém falou:

– Acho inúteis esses pratos azuis.

A tia, de forma delicada e calma, sem desviar os olhos do prato no qual tentava com toda finesse retirar a gordura de um bife, respondeu:

– Não é porque você não gosta de pratos azuis que eles devam ser considerados inúteis. Gosto é algo tão subjetivo que todos devem ser tratados com respeito mesmo os mais destoantes. Desprezar o gosto de outra pessoa apenas impede que ela queira experimentar os seus gostos, os seus pontos de vistas, as suas crenças. O desprezo apenas distancia o outro de aculturar-se. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do rosa? – Mais uma vez você conseguiu terminar um potencial conversa com apenas uma frase. Por que ser tão incisivamente analítica? Talvez eu deva mudar as cores do meu quarto para tons mais quentes, quem sabe assim eu me torne mais receptiva?

O menino escutou tudo o que a tia lhe disse, absorveu e refletiu por alguns momentos e, sem desviar os olhos do prato no qual tentava desajeitado retirar a gordura de um bife, perguntou:

– Por que devemos ajudar outra pessoa?

Sem expectativas, já aguardando o silêncio costumeiro das refeições, ao receber outra pergunta, a tia arqueou as sobrancelhas. Levou um tempo para se recompor e logo depois respondeu:

– Acredito que o desejo de ajudar é algo inerente ao comportamento humano. Vai muito além de um ato de caridade, mas sim é uma ação na qual você demonstra que se simpatiza pela situação em que o outro se encontra. Muitos consideram o ato de ajudar como uma incumbência de ordem divina um comportamento que me desagrada intensamente. Não é aconselhável alimentarmos a ideia de que ajudar outra pessoa é uma obrigação ou, mais desagradável ainda, fazer isso com o intuito de receber algo em troca, seja terrestre ou celestial. Isso não é altruísta. Eu vejo o ato de ajudar como algo leve, uma ação que tranquiliza e um ótimo ansiolítico. Quando você termina de ajudar alguém logo após sente todo o seu corpo relaxando de prazer com todo aquele excesso de endorfina sendo liberada, a melhor recompensa. Essa resposta do nosso corpo que demonstra que o ato de ajudar foi genuíno e não forçado.

– Então, se eu ajudar um animal indefeso, por exemplo um filhote de gato, quer dizer que minha ajuda é verdadeira já que o filhote de gato não poderia me oferecer nada em troca? – O menino perguntou, dessa vez olhando para a tia com um ar de curiosidade.

– Boa observação; podemos dizer que sim. Ajudar um animal já é um ótimo começo para treinar empatia e altruísmo. Você viu algum filhote de gato que precise de ajuda?

– Hoje voltando da escola eu vi um filhote de gato dentro de uma caixa debaixo da ponte. Ele estava miando agudo e alto parecendo que pedia ajuda. No momento em que eu o vi eu não me preocupei tanto, mas desde então eu não consigo parar de pensar nele. O que você me aconselharia a fazer? Você acha que eu deveria ajuda-lo? Com certeza o dono o abandonou e outros não quiseram adotar. Será por que ninguém quis ele?

– Quem tem que decidir isso é você mesmo. Você quem vai cuidar do filhote de gato e tem que estar disposto a arcar com o compromisso que é ter um animal de estimação. Na maioria das vezes, as pessoas precisam de uma ajuda momentânea nada que demande dias e dias de atenção. No entanto, ter um animal de estimação é como criar uma criança que precisa de cuidados diários, de atenção constante. Você será o dono dele e terá a responsabilidade de cuidar e prover o que ele precisar. Ai que está a diferença entre ajudar uma pessoa e um animal. Apesar de nunca ter criado animais de estimação, eu sei que gatos se tornam independentes depois que crescem o que pode ser um incentivo. Posso afirmar que sou mais adepta a gatos do que cachorros. A carência e dependência emocional de cachorros é demais para mim, me faz lembrar do meu último cônjuge – A tia sorriu consigo mesma do último comentário e das lembranças que este trouxe. Continuou.

– Mas me diga, quando você me pede um conselho, na verdade está pedindo a minha permissão para criar um gato aqui em casa?

– Sim, se não for nenhum incomodo – voltando os olhos para o prato e diminuindo o tom de voz. – Eu poderia pegar esse filhote de gato para ser meu? Ele poderia me fazer companhia. Sei lá – Deu de ombros.

O menino ficou apreensivo. Nunca a conversa entre os dois tinha avançado tanto e nunca havia pedido nada a tia. Tudo era não incerto que já se preparava para a negativa. Sabia que desde o início da conversa havia criado expectativas e no fundo torcia por um sim. – E se ela falar não? O que eu devo fazer? Eu quero muito poder cuidar daquele gatinho. Será que devo falar mais, tentar ser mais convincente, deixar mais claro o tanto que isso é importante para mim?

Antes de ouvir a resposta da tia o menino recomeçou a falar.

– Quando eu vi o gatinho, eu me identifiquei com ele. Um filhote sozinho e que perdeu os pais me fez querer ajudar. Lembrei do primeiro dia que vim morar aqui, estava chovendo muito. Eu queria gritar, mas tinha medo de que o meu grito te incomodasse e por isso chorei em silêncio até o dia que as lágrimas não escorreram mais – Ele encarou a tia, o medo por estar se abrindo, se mostrando vulnerável, estampado no seu rosto. – Sim, eu gostaria muito de poder criá-lo, por favor.

Enquanto o menino falava expressando todas aquelas emoções tão bem escondidas por todo aquele tempo, a tia comemorava sem esboçar reação alguma, por estar vivenciando aquele momento tão humano de vulnerabilidade e verdade. O cenário mais próximo do ser uma família que os dois haviam vivenciado. Deixando o calculismo de lado e tentando ser a mais espontânea e sentimental possível, a tia respondeu:

– Claro que você pode, mas saiba que você será o único responsável por ele. Vá buscar o filhote de gato que o levaremos ao veterinário para providenciar as vacinas necessárias, esta casa não é lugar para nenhum ser vivo doente.

Essa fala foi a deixa para o menino que se levantou tão às pressas que a tia se assustou. Ele saiu correndo para a garagem e neste momento apenas um pensamento perpetuava na sua mente – Espero que ele ainda esteja lá e espero que ele esteja bem. Chegando na garagem, foi direto para o canto mais escuro onde havia deixado a bicicleta e atrás dela, coberta por um pano, uma caixa não úmida com o gatinho. O tempo que ele tinha gasto para descer o barranco e pegar o gato foi algo que nem ele mesmo acreditava o quão rápido tinha sido. Ele parou e ficou encarando o gatinho que bebia leite em uma pequena tigela que ele havia providenciado e pensou no quanto havia sido descuidado e se arriscado ao resgatar o filhote de gato. Já esperava a taquicardia que acompanhava as reflexões sobre os momentos de perigo, porém a única coisa que sentiu foi todo o corpo relaxando e com isso sorriu.

Fonte foto de capa unsplash.com

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Para quem chegou até aqui, eu me chamo Pedro Sucupira e sou um professor pesquisador em formação e curioso de um tanto que você não faz ideia. Amo estudar, não é atoa que não aguentei somente fazer o doutorado e já ingressei no curso de filosofia. Sou um descobridor, apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e tudo o que envolve ciência.


Se você se interessou por esse artigo, aqui, no meu blog, você encontra mais textos meus (resenhas, contos e artigos). No Instagram você me encontra como @pedrosucupiraa. No Skoob como Pedro Sucupira, lá você pode acompanhar todos os livros que já li e tenho lido. No Lattes você consegue ver todos os artigos científicos que já publiquei.

E caso queria conversar comigo, compartilhar ideias, experiências e críticas, basta me chamar no pdrohfs@gmail.com.

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