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A Sociedade do Cansaço — A lógica do esgotamento moderno

Atualizado: 29 de mai.


Capa do livro Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, com fundo roxo e tipografia preta em grande escala, destacando o título da obra publicada pela Editora Vozes.

Há livros que não apenas informam, mas nos desvelam. Livros que nos arrancam o véu da normalidade e nos forçam a olhar para o mal-estar cotidiano que habita cada gesto, cada silêncio, cada suspiro cansado. A Sociedade do Cansaço, do filósofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, é um desses textos raros, curtos, densos e precisos como uma punhalada no tecido psíquico da pós-modernidade. Uma obra que, apesar da brevidade, exige uma leitura cuidadosa, quase meditativa, pois cada frase é um convite ao desconforto, e, paradoxalmente, também ao despertar.

Vivemos, segundo Han, em uma época que substituiu os grandes interditos por uma permissão absoluta. A antiga sociedade disciplinar, onde se dizia “não pode”, deu lugar à sociedade do desempenho, onde o imperativo é “você consegue”. O sujeito de antes era vigiado, punido, moldado. Hoje, é ele mesmo quem se vigia, se explora, se cobra. É o próprio algoz de sua produtividade, o escravo que se orgulha de suas correntes. Somos empresários de nós mesmos, sócios de um empreendimento esvaziado de sentido, cuja missão é performar, agradar e vencer, mesmo que seja contra nós mesmos.

“A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível.”

Essa é a perversidade do nosso tempo: o excesso de positividade. A positividade tóxica, como se convencionou chamar, não é apenas um traço de comportamento, é uma lógica social que nos adoece. O excesso de desempenho, de estímulos, de escolhas, de conectividade, nos torna seres esgotados. A depressão, o TDAH, o burnout, a ansiedade generalizada são, para Han, as enfermidades típicas de uma era que transformou tudo, inclusive o lazer, em capital.

“Doenças neuronais como depressão, TDAH, transtorno de personalidade limítrofe ou a síndrome de burnout determinam a paisagem patológica do século XXI – enfartos provocados pelo excesso de positividade.”

A multitarefa, exaltada como competência moderna, é para o filósofo um sintoma de regressão. “Trata-se antes de um retrocesso”, escreve. “A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem.” O humano que se orgulha de fazer mil coisas ao mesmo tempo perdeu a capacidade de habitar o tédio, de mergulhar na lentidão, de ouvir o outro, e, sobretudo, de ouvir a si mesmo. Em uma sociedade onde tudo deve ser produtivo, até o silêncio se torna incômodo. A contemplação vira suspeita. O ócio, pecado capital.

O resultado disso tudo é o cansaço. Mas não qualquer cansaço. Han distingue entre dois tipos: o “cansaço fundamental”, aquele fértil, que surge da contemplação ou da criação — e o “cansaço de esgotamento”, estéril, corrosivo, que nos isola, silencia e fragmenta. O cansaço que destrói vínculos e nos faz ver no outro apenas um obstáculo, um ruído, uma distração. O cansaço que desintegra a linguagem, que rompe com a escuta, que assassina a ternura.

“Esses cansaços que consumiram com fogo nossa capacidade de falar, a alma – eles são violência porque destroem qualquer comunidade, qualquer elemento comum, qualquer proximidade, sim, inclusive a própria linguagem.”

Nesse cenário, o paradoxo da liberdade se revela com força. A liberdade não nos libertou, nos acorrentou a novos padrões de produtividade, felicidade e sucesso. A positividade compulsória nos impede de dizer não, de fracassar, de parar. O sofrimento se tornou vergonhoso. A tristeza é um tabu. O descanso precisa ser justificado. Vivemos sob a tirania da performance, e quem não performa é descartável.

A sociedade da transparência, como ele desenvolve em outros escritos, é também uma sociedade da exposição. Todos se mostram, mas ninguém se vê. Todos compartilham, mas quase ninguém escuta. O eu se dissolve no desempenho e o outro desaparece na indiferença. A solidão, travestida de liberdade, torna-se a nova normalidade. As redes sociais, espelhos infinitos da vaidade e da comparação, se tornaram vitrines onde sorrimos com cansaço, enquanto por dentro nos sentimos cada vez mais vazios.

“O excesso de positividade leva à destruição das formas de vida contemplativas. Destrói o silêncio. A contemplação pressupõe uma interrupção da ação e do fazer, uma escuta aberta e receptiva.”

Nesse contexto, desacelerar torna-se um gesto subversivo. Recusar a lógica da autoexploração é, em si, um ato político. O silêncio, a pausa, o descanso, a inação, tudo aquilo que foi desprezado em nome da produtividade, são agora formas de resistência. Recuperar o tédio, a lentidão, a inatividade pode ser um caminho para restituir o sentido da vida e do encontro com o outro.

Li A Sociedade do Cansaço como quem atravessa um espelho estilhaçado. Cada fragmento me devolvia uma imagem torta, inquietante, reveladora. Não é um livro para ser lido de uma vez só, apesar de seu tamanho, mas para ser ruminado, confrontado, vivido. Sua concisão contrasta com a profundidade de suas ideias. Ele não escreve para entreter, mas para confrontar. Cada frase é uma alfinetada, cada parágrafo uma provocação. O texto exige do leitor uma leitura lenta, cuidadosa. um desafio necessário em tempos de aceleração.

Talvez estejamos todos cansados, mas é preciso distinguir o cansaço da submissão. O cansaço criativo ainda nos pertence. O cansaço que vem após a leitura, após a escuta, após o cuidado. O cansaço que pode gerar contemplação e transformação. Contra a lógica da produtividade, talvez seja o caso de reabilitarmos o ócio, o não fazer, o pensar gratuito.

Termino este artigo com um convite. Que possamos pausar. Que aprendamos a habitar o tédio. Que a contemplação, ainda que rara, possa nos visitar. E que, quem sabe, comecemos a desconstruir essa lógica que nos esgota, para então reimaginar um modo de vida em que viver não seja sinônimo de produzir. Que tenhamos a coragem de fracassar. E que, ao menos uma vez por dia, nos permitamos ser, apenas ser. Sem meta. Sem pressa. Sem culpa.



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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.

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Fonte foto de capa unsplash.com

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