Vozes de Tchernóbil — a história oral do desastre nuclear, por Svetlana Aleksiévitch.
- Pedro Sucupira
- 29 de mai.
- 3 min de leitura
Alguns livros não são apenas lidos, são suportados. Vozes de Tchernóbil, da premiada jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ingressa, sem hesitação, na amarga galeria das obras mais devastadoras que já passaram por minhas mãos. Não apenas pela tragédia que relata, mas pela maneira como o faz: sem adornos, sem distanciamento, apenas com vozes, as vozes de quem viveu, sofreu, enlouqueceu e morreu por dentro.

Trata-se de um livro que não se devora. Ao contrário: engasga-se. Precisa ser sorvido em goles lentos, pois carrega uma densidade emocional rara, uma tristeza viscosa que escorre pelas páginas. A radiação, essa entidade invisível, inodora e implacável, está presente em cada testemunho, não como metáfora, mas como sentença. A impotência humana diante do que não pode ser visto nem tocado é o fio que costura esses relatos de horror. Em muitos momentos, confesso, fui vencido pelas lágrimas.
O que torna a leitura ainda mais insuportável é o descaso, quase cínico, do Estado soviético, suas omissões deliberadas, a manipulação dos fatos, a transformação do povo em mártir involuntário de uma ideologia falida. Não se trata apenas de um acidente nuclear. Vozes de Tchernóbil é a crônica de uma traição coletiva. Pessoas foram convocadas para tarefas de “limpeza” sem saber que estavam sendo lançadas à morte. Homens foram transformados em escudos humanos. Mulheres viram seus filhos nascer deformados. Crianças foram enterradas antes mesmo de aprenderem a falar. E tudo isso, sob o silêncio ensurdecedor de uma máquina burocrática que preferia negar a verdade a comprometer sua imagem.
A autora, com uma escuta rara e afiada, recolhe depoimentos como quem recolhe destroços após uma explosão: com cuidado, com reverência, mas também com a consciência de que cada pedaço carrega dor. Não há intermediação, a narrativa é entregue por meio de vozes cruas, às vezes fragmentadas, muitas vezes contraditórias, como costuma ser a memória do trauma. É nesse polifônico coral de dor que a força do livro reside. Não há linearidade. Há vidas partidas, histórias interrompidas, lutos não elaborados.
Os relatos que envolvem os animais, a terra, os rios contaminados, as florestas transformadas em zonas de morte silenciosa, ampliam o escopo do livro para além da catástrofe humana. Tchernóbil não destruiu apenas corpos e famílias, destruiu a natureza, contaminou gerações, alterou a percepção do tempo e do espaço. O invisível tornou-se permanente. O inimigo, inominável. A vida, imprevisível.
Ao registrar essas vozes, Aleksiévitch realiza mais do que um trabalho jornalístico. Ela constrói um memorial. Não à grandiosidade da ciência ou ao heroísmo militar, mas ao sofrimento anônimo. Um memorial da dor ordinária, da tragédia doméstica, da angústia que se dá entre lençóis e corredores de hospital. É, nesse sentido, um livro político porque denuncia, sem panfletos, a perversidade de um Estado que mentiu até o fim. Mas também é, paradoxalmente, um livro espiritual porque nos confronta com as perguntas últimas: o que é a vida? O que é o corpo? O que é o esquecimento?
A escritora, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015, recebe aqui mais do que reconhecimento: recebe aplausos de pé. Escrever Vozes de Tchernóbil não é apenas um feito literário, é um ato de bravura. Poucos teriam o sangue-frio e o coração aberto para ouvir o que ela ouviu e, mais ainda, para transformar isso em linguagem. Há, em cada página, uma escolha ética. Um compromisso com a verdade que não cabe nos relatórios oficiais nem nas estatísticas.
Sim, este é o livro mais triste que já li. E talvez por isso mesmo, seja um dos mais necessários. Porque nos lembra que, enquanto houver quem se disponha a ouvir, enquanto houver livros que resistam ao esquecimento, a história dessas pessoas jamais será enterrada sob a poeira radioativa da negligência.
Leitura obrigatória. Mas prepare-se. Há dores que não podem ser lidas sem estremecer. E Vozes de Tchernóbil é uma dessas experiências que transformam. Talvez para sempre.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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