Vermelho Amargo — A infância ferida na prosa poética de Bartolomeu Campos de Queirós
- Pedro Sucupira
- 25 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de mai.
Vermelho Amargo é um daqueles livros que não se lê: degusta-se com silêncio e se carrega por dias, talvez por uma vida inteira. A obra, de forte cunho autobiográfico, foi escrita pelo mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, um dos grandes nomes da literatura brasileira, vencedor do Prêmio Jabuti e de tantos outros reconhecimentos literários, todos justificados. Aqui, ele abandona os enfeites da ficção tradicional e mergulha na memória crua e poética da infância, narrada em primeira pessoa por um menino caçula de cinco filhos.

O que se revela, no entanto, não é uma infância qualquer, mas uma marcada pela solidão, ausência e silêncio. A figura materna, eixo emocional e afetivo da família, foi tragicamente substituída por uma madrasta rígida, indiferente, ciumenta, obcecada por simetria e controle. E é com ela que se instauram os ritos de exílio afetivo, simbolizados pelas refeições repetitivas onde o tomate, sempre fatiado com precisão, torna-se um sol amargo, uma oferenda agridoce, uma ameaça muda.
O pai, alcoólatra e ausente, ronda a casa como um vulto, e os irmãos vão, um a um, abandonando o lar, deixando o protagonista cada vez mais imerso na própria solitude. O livro é construído em pequenos parágrafos de memória, como se fossem fragmentos de um espelho quebrado ou, talvez, uma contagem regressiva da infância até a orfandade completa do afeto. A sensação é de que o narrador escreve não apenas para lembrar, mas para tentar resistir ao esquecimento, ou ao trauma.
A prosa de Bartolomeu é profundamente poética, metafórica e insinuante. Ler Vermelho Amargo é entrar num jogo de adivinhação, em que cada metáfora pede um gesto de escuta atenta, quase intuitiva. É um livro que não se entrega fácil: exige do leitor sensibilidade para decifrar o que está por trás do não dito, do que se insinua por entre as frestas das janelas e das palavras.
Metáforas atravessam o texto como cicatrizes reluzentes. A irmã que não larga suas agulhas e ponto cruz, o irmão que come vidro, não como espetáculo grotesco, mas como uma fome de ausência, de dor internalizada, e a madrasta que martela bifes com violência ritual, como se quisesse espancar a carne até que ela se rendesse ao formato ideal. A vida, aqui, é servida no prato, com ordem, com disciplina, com silêncio. Mas é uma vida sem tempero, sem ternura. É a sobrevivência arrumada com esmero.
E o tomate... Ah, o tomate. Ele aparece sempre como símbolo maior da exclusão, do exílio, do amargor silencioso que o menino engole dia após dia. Em uma das passagens mais poderosas, ele escreve:
“Ah! O tomate. Quanto espanto ele me suscitava. Sua presença anunciava meu exílio. Um dia, por certo, eu deveria ser deportado, mesmo sem cometer crime.”
O gesto de aceitar o tomate, como se engole um sapo, é a metáfora perfeita para a infância atravessada por imposições, por afetos forçados, por obediências não escolhidas. O tomate vegeta, o menino vivencia, e isso, por si só, já é um conflito existencial.
Outro trecho que me marcou profundamente, e que parece condensar o espírito da obra, diz:
“A madrasta montava a comida em cada prato. O arroz de um lado. O feijão ralo ficava ancorado no arroz, lembrando uma praia mansa com um mar negro, sem ondas. Na extremidade do oceano, uma ilha feita de abóbora, chuchu ou quiabo, segundo sua escolha. Um fragmento de carne – renda bem engomada – segurava o arroz. A fatia de tomate entrava como um sol, sobre o arroz em neve, colorindo o seu império.”
Essa descrição, quase pictórica, revela como o olhar do menino não era ingênuo, mas profundamente estético, sensível e observador. Ele via a dor nos detalhes. Era através da montagem do prato, um ritual doméstico aparentemente banal, que ele reconhecia a ausência de afeto, o autoritarismo silencioso, a rigidez de uma casa onde o amor era substituído por controle.
Vermelho Amargo é, portanto, um livro sobre a orfandade emocional. Sobre crescer sem colo. Sobre a saudade da mãe que não volta. Sobre a culpa, o pecado, a descoberta do desejo, tudo envolto numa linguagem que oscila entre o sagrado e o profano, entre a infância e a maturidade, entre o medo e o encanto.
É impossível sair incólume da leitura. O livro nos obriga a lembrar da nossa própria infância, e do quanto nela couberam silêncios, violências disfarçadas, vazios sem nome. Bartolomeu escreve como quem cicatriza uma ferida aberta com palavras. E o leitor, ao acompanhar esse gesto, talvez cicatrize um pouco das suas também.
Vermelho Amargo é pequeno em extensão, mas imenso em densidade poética. É daqueles livros que podem ser lidos em uma tarde, mas reverberam por muito tempo. Como o sabor do tomate maduro, meio doce, meio ácido, que a gente nunca mais esquece depois de engolido.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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