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Longo e Claro Rio, Liz Moore — Suspense social sobre vício, laços familiares e a vida real em Kensington

Atualizado: 22 de mai.

Longo e Claro Rio é um daqueles romances de ficção que nos colocam, desde as primeiras páginas, diante de uma pergunta incômoda: o que aqui é inventado? O que é ficcional e o que é realidade disfarçada? Ao longo da leitura, a linha entre a ficção e o mundo real se dissolve. Tudo parece tão verossímil, tão possível — e, tristemente, tão cotidiano — que o livro se lê com a urgência de um testemunho. Foi assim que me senti do início ao fim: como se estivesse lendo algo que, mais do que inventado, foi vivido.

 

Capa do livro Longo e Claro Rio, de Liz Moore, com fundo azul escuro e ilustração colorida de ponte urbana, simbolizando a ambientação em Kensington, Filadélfia.

Escrito pela norte-americana Liz Moore, o romance se desenrola no bairro de Kensington, na Filadélfia, uma das regiões com as maiores taxas de dependência de opioides dos Estados Unidos. O livro aborda esse cenário com precisão e empatia. Não à toa. Liz vive na Filadélfia há mais de uma década e conheceu Kensington durante entrevistas com moradores da região, realizadas para o projeto Kensington Blues, do fotógrafo Jeffrey Stockbridge. É desse contato direto com a realidade que nasce a força do livro, sua clareza, seu peso, sua densidade. A cada página, somos imersos na paisagem urbana da exclusão, da dependência e da dor, não como observadores, mas como quem caminha pelas ruas com os personagens.

 

A protagonista, Michaela Fitzpatrick, é uma policial criada em Kensington, cuja vida é atravessada pela dependência química da irmã, Kacey, usuária de heroína que desaparece durante uma onda de assassinatos de mulheres jovens e dependentes na região. A busca por Kacey transforma-se em um mergulho no passado e no presente, e, sobretudo, em um retrato íntimo e coletivo das muitas formas de perder alguém para as drogas antes mesmo da morte.

 

“Mas se eu tinha vergonha da minha aparência, tinha orgulho da minha inteligência, que imaginava no meu íntimo como algo que descansava tranquilamente dentro de mim, um dragão adormecido a proteger uma riqueza que ninguém, nem mesmo Gee, podia me tirar. Uma arma que eu um dia usaria para salvar nós duas: eu e minha irmã.”

 

É raro encontrar livros de suspense policial narrados do ponto de vista feminino e ainda mais raro que esse olhar seja tão múltiplo. Em Longo e Claro Rio, as mulheres não são apenas personagens: elas são o centro, o fio, a espinha dorsal da narrativa. Michaela, Kacey, a avó, a mãe, a colega de trabalho, a babá, a vizinha Sra. Mahon (uma das personagens mais marcantes e humanas da trama), todas desenham, com suas histórias entrelaçadas, um painel amplo e profundo do que é ser mulher em contextos adversos.

 

E Moore vai além. Ela retrata a experiência da maternidade não com os clichês da romantização, mas com lucidez e respeito pela dor real. Mães dependentes químicas, cujos filhos nascem em crise de abstinência. Mães julgadas, abandonadas, silenciadas. Mulheres que enfrentam sozinhas o peso de errar e o medo de não conseguir mais acertar. Essa camada da narrativa dá à obra uma profundidade emocional que a distancia de qualquer simplificação moral.

 

“Num momento de clareza, Kacey certa vez me disse que o tempo para quem é viciado parece ser circular. Toda manhã traz consigo uma possibilidade de mudança, e toda noite a vergonha do fracasso. Conseguir a dose passa a ser a única tarefa. Cada dose é uma parábola, depressão-onda-depressão, e cada dia é uma série dessas ondas; e então os dias em si se tornam mapeáveis dependendo de quanto tempo ao todo o usuário passa sentindo conforto ou sentindo dor; e depois meses...”

 

A grandeza de Longo e Claro Rio está também no modo como Liz Moore se recusa a oferecer julgamentos fáceis. Seus personagens não são bons ou maus. São humanos, complexos, contraditórios, falhos e, por isso mesmo, profundamente reais. Em uma entrevista, a autora afirmou:

 

“[...] como escritora, nunca é minha tarefa ou meu objetivo pintar alguém como bom ou mau. Neste livro ou em qualquer um dos meus outros livros, espero que todos os meus personagens sejam bons e maus [...]. Porque acho que é assim que todas as pessoas são: boas e más.”

 

Essa declaração ressoa em cada página. Moore escreve com honestidade, evitando a armadilha da caricatura ou da idealização. A leitura, por isso, se torna uma experiência de identificação emocional profunda. Reconhecemos os personagens, ou melhor, nos reconhecemos neles. Em suas lutas, suas recaídas, seus silêncios e tentativas.

 

Ao final da leitura, fica evidente que estamos diante de uma obra que transcende o gênero policial. Sim, há mistério, há desaparecimento, há investigação. Mas há, acima de tudo, uma exploração sincera da condição humana. E isso, para mim, é o que torna este livro tão marcante. É uma obra sobre o amor entre irmãs, sobre as cicatrizes da infância, sobre vício e perda, mas, acima de tudo, sobre resiliência e presença. Aquelas que ficam, que buscam, que lembram.

 

Longo e Claro Rio é um livro de suspense, sim. Mas é também uma elegia àqueles que lutam todos os dias, contra a dependência, contra a dor, contra o esquecimento. E que, apesar de tudo, continuam.


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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.

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