Desigualdades de gênero, raça e etnia – Uma Leitura Crítica sobre Exclusão e Representatividade
- Pedro Sucupira
- 11 de jun.
- 6 min de leitura

A obra Desigualdades de gênero, raça e etnia — escrito por Ana Paula Comin de Carvalho, Nilson Weisheimer, Nádia Elisa Meinerz, Débora Allebrandt e Cristian Jobi Salaini — é um livro conceitual e atemporal que apresenta os principais fundamentos relacionados ao estudo científico das desigualdades sociais. Desigualdades de gênero, raça e etnia é uma obra que se aprofunda na discussão sobre diferentes formas de desigualdade — um tema tanto complexo quanto atual.
A partir de sua leitura, somos conduzidos a uma introdução sólida ao tema, fundamental para a compreensão e o aprofundamento posterior dessa temática. Aqui, o leitor encontrará reflexões sobre crenças preconceituosas, ações discriminatórias, rotulações pejorativas e condutas excludentes.
Ao longo dos 10 capítulos que compõem a obra, compreendemos, por meio das discussões baseadas em estudos científicos sobre desigualdades, que os sentidos atribuídos às diferenças sexuais, físicas e culturais são construções sociais — e que, muitas vezes, contribuem para justificar e manter as desigualdades existentes.
Nos capítulos 1 e 2, são apresentados e discutidos conceitos básicos como desigualdade e diferenciação social, elementos essenciais para a compreensão da temática. Já os capítulos 3, 4 e 5 são dedicados ao debate sobre desigualdades de gênero, abordando sexualidades, gênero e feminismo sob a perspectiva de pesquisas que exploram as relações sociais entre as diversas expressões de masculinidades e feminilidades na sociedade contemporânea.
Nos três capítulos seguintes — 6, 7 e 8 —, os temas da raça e da etnicidade são explorados com profundidade, valendo-se de estudos sociológicos e antropológicos para compreender as desigualdades específicas que perpassam essas categorias. O capítulo 9 concentra-se na abordagem conceitual das diferenças entre preconceito, discriminação, estereótipo e estigma, elementos que atravessam as relações de gênero, raça e etnia. Por fim, o capítulo 10 apresenta as formas de combate às desigualdades sociais, com ênfase na trajetória histórica das políticas afirmativas voltadas às mulheres e aos grupos étnicos.
A participação de diversos estudiosos na construção da obra é um de seus grandes diferenciais. As múltiplas perspectivas com que o tema é abordado enriquecem profundamente o aprendizado do leitor, que se depara com contribuições de antropólogos, cientistas sociais e sociólogos cujas linhas de pesquisa estão diretamente ligadas ao conteúdo que apresentam — trazendo, assim, densidade e profundidade ao tema, mesmo em poucas páginas.
Desigualdades é um tema em constante atualização, que se reinventa a cada novo estudo, livro, dissertação ou tese. Obras que se propõem a analisá-lo precisam passar por revisões periódicas para refletir com fidelidade as transformações sociais e o avanço das discussões. No caso de Desigualdades de gênero, raça e etnia, é imprescindível atualizar o vocabulário empregado, de modo a respeitar os grupos estudados e aprimorar a precisão conceitual.
Por exemplo, o termo “hermafrodita” — utilizado no capítulo 5, p. 92 — carrega, na prática, conotações pejorativas quando aplicado a pessoas intersexuais. Recomenda-se substituí-lo por intersexo, expressão que designa indivíduos nascidos com características físicas, genéticas ou hormonais que não se enquadram totalmente nas definições biológicas típicas de masculino (cromossomo XY) ou feminino (cromossomo XX). Essa atualização terminológica não só corrige um deslize histórico, como também alinha a obra às melhores práticas do campo dos estudos de gênero.
Outro equívoco presente no mesmo capítulo diz respeito ao uso do artigo masculino para se referir a travestis femininas — página 93. Nesse caso, o correto é empregar o artigo feminino, em respeito à identidade de gênero dessas mulheres. O uso do artigo inadequado não é apenas um erro gramatical, mas uma falha que invisibiliza e invalida a vivência dessas pessoas.
Ainda nesse trecho do livro, há outra incorreção preocupante. A autora refere-se como “travestis” às mulheres transexuais que não optaram por realizar a cirurgia de reafirmação de gênero, mantendo suas genitálias “masculinas” por motivos supostamente ligados ao trabalho, ao prazer físico e à experiência erótica. Essa formulação é problemática em dois níveis.
Em primeiro lugar, a forma como a autora menciona o “trabalho” sugere, de maneira implícita, a prostituição como destino natural das pessoas trans — especialmente das travestis. Tal associação reforça um estereótipo historicamente construído e profundamente limitador. Nós, enquanto classe acadêmica e agentes do conhecimento, temos a responsabilidade de combater essa narrativa reducionista que aprisiona mulheres trans à marginalidade e ao mercado do sexo como única forma de sobrevivência.
Embora seja fato que mais de 90% da população trans feminina no Brasil esteja hoje na prostituição, é fundamental destacar que essa realidade não decorre de uma escolha autônoma ou deliberada, mas sim da exclusão sistemática que esse grupo sofre em todos os âmbitos sociais. Estamos diante de um mercado de trabalho estruturalmente transfóbico, que nega às pessoas trans o acesso à educação, à saúde e às oportunidades profissionais mais básicas.
Some-se a isso um dado alarmante: 91% das travestis e mulheres transexuais não concluíram o ensino médio. Esse déficit educacional, consequência direta da violência institucional e do preconceito estrutural, atua como um mecanismo que perpetua a marginalização e impede o pleno desenvolvimento profissional e humano dessas pessoas.
É urgente, portanto, que obras acadêmicas como Desigualdades de gênero, raça e etnia estejam atentas ao uso da linguagem, à precisão conceitual e, sobretudo, ao papel político que exercem na construção ou desconstrução de imaginários sociais excludentes.
Um segundo ponto sensível diz respeito à forma como a autora se refere às travestis, tratando-as como mulheres trans que optaram por manter o órgão genital pênis, o que acaba por instaurar uma hierarquização implícita dentro do próprio grupo das pessoas trans — como se as travestis fossem "menos trans" do que aquelas que passaram por procedimentos de reafirmação de gênero. Tal distinção é não apenas incorreta, como também reforça um olhar normativo e excludente sobre os corpos dissidentes.
Para esclarecer: os termos travesti, transgênero e transexual podem todos ser utilizados para se referir a mulheres trans. A diferença entre eles reside muito mais na sua conotação social e origem histórica do que em qualquer critério objetivo de legitimidade identitária. O termo travesti carrega uma história política própria e, embora seja menos higienizado aos olhos da sociedade quando comparado a transgênero ou transexual — termos cunhados pelas ciências sociais e médicas —, não deve ser entendido como inferior ou menos legítimo.
Submeter-se ou não a procedimentos de reafirmação de gênero não define a identidade de gênero de uma pessoa. O que define se alguém é ou não trans é o sentimento subjetivo e íntimo de não pertencimento ao sexo atribuído no nascimento. Insistir em critérios corporais ou cirúrgicos como marcadores da identidade é perpetuar uma lógica biologizante que contribui diretamente para a manutenção da discriminação e da violência estrutural contra a população trans.
Esse tipo de discurso também reforça uma hierarquização baseada na passabilidade, ou seja, na capacidade de uma pessoa trans ser percebida socialmente como pertencente ao gênero para o qual transiciona. A passabilidade, no entanto, não é um mérito pessoal, mas um reflexo direto do acesso a recursos financeiros, apoio familiar e cuidados médicos. Em outras palavras, utilizar a passabilidade como parâmetro de legitimidade ou aceitação social é injusto, pois a grande maioria das pessoas trans jamais teve — e muitas vezes jamais terá — acesso a tais condições.
Reproduzir esse tipo de lógica em uma obra acadêmica é, ainda que de forma não intencional, reforçar camadas de exclusão e marginalização, justamente contra um dos grupos mais vulnerabilizados da sociedade.

Ao final da leitura, compreendemos o quão complexo e vasto é o campo das desigualdades. Ainda assim, o livro cumpre com maestria seu propósito introdutório, apresentando os principais conceitos e debates que certamente servirão de guia para leitores e leitoras que desejarem aprofundar-se em discussões mais densas e robustas.
Outro grande trunfo da obra está em sua linguagem. Sem sombra de dúvida, trata-se de um livro pensado para alcançar o maior número possível de pessoas, com uma escrita clara, acessível, parágrafos breves e uma cadência de ideias bem articulada — coerente, coesa e fluida.
Assim, apesar dos equívocos apontados e que merecem revisão, Desigualdades de gênero, raça e etnia é uma leitura indispensável. Uma obra que se insere, com legitimidade, no escopo dos movimentos que lutam por inclusão social, empoderamento e reparação histórica, ao contribuir ativamente para a desconstrução de uma longa trajetória de marginalização e descredibilização de mulheres, pessoas negras, indígenas e da comunidade LGBTQIAP+.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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