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A Praça “Abandonada” – Um conto sombrio sobre vaidade, fama e assombração

Atualizado: 25 de mai.


Crânio humano em destaque sob luz dramática, cercado por fundo completamente preto, criando uma atmosfera sombria e misteriosa.

— O que dizer dos jovens de hoje? Aliás, todos são jovens comparados a ela. Todos, sem exceção. Até a mulher mais velha do mundo ainda seria considerada uma criança diante de sua idade. Ela já estava aqui muito antes de tudo o que a cerca surgir, antes do nome, antes da palavra falada ou escrita. Após todas as mudanças, permanece: um respiro verde sufocado pela selva de concreto. Hoje, no quadro Show de Horrores, contarei a história da Praça Abandonada, ou seria Amaldiçoada? Fique conosco para conhecer os atos horrendos que aconteceram neste local.

— Transmitimos agora de um lugar que exala terror. Como podem ver, trata-se de uma praça pequena — disse o apresentador, apontando com o dedo para onde a câmera devia focar. — No centro, temos esta árvore, que segundo nossa produção, é uma Handroanthus impetiginosus, com mais de quarenta anos — acrescentou, olhando para a copa seca, com poucos fiapos de folhas prestes a cair e flores arroxeadas efêmeras. — De acordo com nossas fontes, este grande ipê-roxo foi plantado em homenagem à filha de uma moradora da região, falecida em um acidente.

— Ao redor, há diferentes tipos de vegetação rasteira, como esta Tradescantia zebrina, que já tomou conta de grande parte do terreno. E ali — apontou para um declive suave que levava a uma rua — cresce a conhecida Arachis repens, comum nesta cidade.

— Tentamos contato com outros moradores, mas a região não é das mais habitadas. Ao lado da praça, há um prédio de quatro andares, com apenas alguns moradores — disse, forçando um tom de suspense enquanto apontava para as janelas acesas. — Do outro lado, há um paredão que dá para uma casa abandonada. O bairro esvaziou após os desaparecimentos inexplicáveis. Até a polícia arquivou os casos. Os que restaram vivem aqui por falta de opção. Vimos alguns idosos durante o dia, além de moradores do prédio, que se recusaram a conversar conosco. Apenas observam — sinalizou à câmera para cortar. — Fred, só mais uma ou duas falas e vamos embora. Este lugar me dá arrepios.

— Talvez seja esse o objetivo do seu canal: causar arrepios e medo nos espectadores — respondeu Fred, com ironia, saindo de trás da câmera portátil.

— Deixa de ser idiota e liga essa câmera logo — Marlon, o apresentador, já não conseguia disfarçar o cansaço, a irritação e o nervosismo. Foram horas de viagem até aquele bairro infame, dito “mal-assombrado”.

Marlon Abude já visitara locais com essa fama, mas nenhum tão carregado de uma aura densa e sufocante como essa praça. Mal chegara e já queria partir. Sabia, desde o início, que manter um canal no YouTube não seria fácil e que concessões seriam necessárias. Arriscar-se fazia parte. Já tentara de tudo: nichos diversos, estratégias duvidosas, fraudes, humilhações. Nada funcionara. Até perceber que o que realmente atraía o público eram tragédias — sangue, morte e o sobrenatural. Ali estava ele, após quase um ano explorando assassinatos, assombrações e massacres, numa praça esquecida, numa noite fria, em busca de curtidas.

— Quais segredos essa praça esconde? Por que tantos desaparecimentos e mortes inexplicáveis? O que se esconde sob este chão? — disse, batendo o pé e esmagando a vegetação rasteira. — Vocês aí de casa ficarão aterrorizados com os acontecimentos macabros desta praça. A segunda parte da história será divulgada em outro vídeo, se, e somente se, este atingir um milhão de visualizações e duzentas mil curtidas. Não se esqueçam de se inscrever no canal. É nessa que eu vou. Corta!

— Vamos, Fred. Já deu por hoje. Este vento frio está acabando com meus lábios. Depois gravamos a continuação em qualquer outra praça. São todas iguais. Não precisamos voltar aqui. Este lugar me dá arrepios — Fred desligou a câmera, ajeitou os shorts largos, arrumou o boné, acendeu um cigarro e começou a descer o declive rumo ao carro.

Ambos seguiram em direção à rua sem saída, onde o carro, alugado com os modestos frutos da monetização do canal, os aguardava. Era preciso manobrar e percorrer quase cem metros até alcançar a rua principal, que cortava o bairro como uma artéria esquecida.

Marlon descia de forma desajeitada, levantando as pernas mais do que o necessário, como se pisasse em lama imaginária. Esmagava a vegetação rasteira sem qualquer respeito, ignorando os ladrilhos com desenhos de flores que, esquecidos, guiavam transeuntes que já não vinham.

— Aquele texto inicial foi genial. Vai prender qualquer um que assistir ao vídeo. É nos primeiros segundos que se conquista o público. Pena que a autora não quis me ceder o texto de bom grado... Um pequeno roubo por uma causa maior. Duvido que aquela professora veja meu canal. Chegando em casa, Fred, você edita o vídeo, e amanhã à noite ele vai ao ar. Vai ser um sucesso — disse Marlon, lançando um olhar de soslaio ao cinegrafista.

— Peraí — Fred parou abruptamente. — Você me contratou pra dirigir e filmar, não pra editar vídeo. Edição é outro preço.

— Como assim? O Diego disse que você fazia tudo por um preço só. Vocês, freelancers, são um bando de mercenários! Vão me levar à falência.

— Marlon, você pagou por filmagem e transporte. Edição é outro serviço. Você nem mencionou isso.

Fred já estava cansado. Já filmara para muitos YouTubers, mas poucos eram tão falsos e exploradores quanto Marlon.

— Calma, moço, a gente combina depois — disse Marlon, usando aquele tom conciliador que usava com garçons e motoristas de aplicativo. Sabia ludibriar. Sabia comprar tempo. Seu vídeo sairia pontualmente — disso tinha certeza. Já se via com 100 mil inscritos e a cobiçada placa de prata nas mãos. Quem sabe até o fim do mês?

Na rua sem saída, próxima à praça, havia apenas um poste com uma lâmpada pálida, amarela, que tremeluzia como vela ao vento. Ao descerem o leve declive em direção ao carro, a luz se apagou, mergulhando-os em escuridão parcial. Em uma cidade grande, o escuro nunca é completo. Havia sempre luzes distantes, suficientes para tornar as sombras mais inquietantes.

Marlon, que já estava nervoso, deu um sobressalto, quase caindo.

— Era só o que me faltava! Estar nesse lugar apavorante, no escuro. — Começou a apalpar os bolsos como quem procura uma tábua de salvação. — Fred, você viu meu celular?

Fred caminhava à frente, câmera debaixo do braço, tentando acender um cigarro de palha.

— Explorador de freelancer, não vi nada. Deve ter caído perto da árvore enquanto você fazia seu teatrinho pra assustar criancinhas. ‘Olhem quantos desaparecidos nessa praça totalmente normal que eu finjo ser assombrada pra ganhar seguidores...’

— Idiota... — Marlon nem se deu ao trabalho de retrucar. Sabia a fraude que era. — Liga pra mim. Vamos ver onde ele caiu.

Fred pegou o celular e discou. Um brilho tênue surgiu entre as folhas da Tradescantia zebrina que rodeavam a árvore, denunciando a posição do telefone.

— Caramba, olha onde está. Tava tão focado que nem vi cair. Vai manobrando o carro enquanto eu pego — disse Marlon, agora visivelmente abatido. Ser chamado de fraude ainda o abalava. A síndrome do impostor capitalista era real demais para ser ignorada. Mesmo aos quase quarenta, não aceitava que o que o livrara da miséria era o berço confortável de homem branco, cis, de classe média. O que seria dele sem a mesada dos pais? Sem o colchão invisível de privilégios?

Perseguido por esses pensamentos, subiu o declive de volta à árvore. O esforço foi maior do que esperava. O terreno era íngreme apenas o suficiente para fazê-lo suar em bicas. Por dentro do blazer alugado, o calor era insuportável. Mas não ousava tirá-lo. O aluguel fora caro. Qualquer dano, qualquer mancha, significava prejuízo.

No meio do caminho, parou para recuperar o fôlego. Olhou ao redor. Algo havia mudado.

Tudo estava imóvel. As folhas, antes agitadas, estavam paradas. O ar, espesso. Olhou para trás. O carro, com os faróis acesos, e Fred dentro. Mas nada se movia. Nem mesmo o vento.

Um arrepio subiu-lhe pela espinha, do cóccix à nuca. Olhou para a árvore. Atrás do tronco, um rosto o encarava. Apenas metade visível: um olho arregalado, pupila dilatada, rodeado por cabelos desgrenhados. A mente tentou racionalizar. Uma sombra? Um galho? Um truque da luz?

Ouviu folhas se moverem. Forçou-se a acreditar: era apenas uma folha de Monstera deliciosa enroscada no tronco.

Respirou fundo. Endireitou os joelhos. O medo persistia, como ferro em brasa sob a pele. E a taquicardia avançava. Por favor, não agora. Não uma crise.

Mas precisava do celular. Era sua vida, sua identidade, seu sustento.

Agachou-se, tateou o chão entre as folhas da Tradescantia. O chão úmido. O blazer sujando-se. Precisou ajoelhar-se. Apalpou, enfim, o objeto — alívio. A arritmia cessou por um instante.

Então, ouviu. Folhas. Movendo-se.

Olhou para a árvore. Lá estava ele. O rosto. Mais próximo. Olhos esbugalhados, unhas longas agarradas ao tronco. A criatura não se mexia, mas estava ali. Observando.

Marlon gritou, recuou, caiu. Rolou alguns metros. Preso em cipós. De bruços. O celular ainda na mão. Ergueu-se como pôde, como alguém emergindo do fundo d’água, sufocado.

Diante de si, outra criatura. Idêntica. De cócoras. Defecando. Jorros líquidos. Sorria. Dentes podres. Um riso que misturava escárnio e asco. Um riso que alimentava-se do horror.

O cheiro foi avassalador. Marlon gritou, tentou se soltar. Suas pernas presas. Cipós, mãos? Já não sabia. Estava cercado.

Vultos surgiam de todas as direções. Criaturas encurvadas, sujas, com olhos arregalados. Um carregava pedras. Outro cavava buracos. Todos convergiam.

O terror atingiu o ápice. A mente desligou. Marlon desmaiou.

Marlon despertou com um tapa forte no rosto.

— Você tá bem? — perguntou Fred, curvado sobre ele.

Marlon ainda estava no chão, sujo, encharcado de suor e terra, a vegetação rasteira colada à pele. Os olhos arregalados, confusos, procuravam desesperadamente pelas criaturas, pelas mãos, pelas fezes. Nada.

— O que... aconteceu? — balbuciou, ofegante, tentando se erguer.

— Eu é que pergunto. Você tava demorando demais. Saí do carro pra ver onde tava e te encontrei aqui, agachado, calças arriadas... cagando. Olha pra você, tá todo sujo de merda. Voltei pro carro, não acreditei no que vi. Esperei quase uma hora. Quando voltei, te achei dormindo, como se nada tivesse acontecido. E agora, vai levantar ou quer passar a noite aqui fedendo?

Fred, fazendo careta, estendeu a mão. Marlon, ainda atordoado, aceitou. Levantou-se cambaleando, tentando entender o que era delírio, o que era real. Já havia enfrentado crises de ansiedade antes, mas nunca uma assim. Nunca com perda de consciência. Nunca com... tanta sujeira.

Silêncio entre eles até chegarem ao carro. Entraram. Fred ligou o motor. Os faróis cortaram a penumbra. Marlon, exausto, aliviado por estar protegido pelo interior do veículo, pegou o celular. Notificações. Seguidores. Nenhuma mensagem pessoal. O vazio da tela refletia o vazio das suas relações.

Foi então que percebeu. O carro não se movia.

Virou-se para Fred, pronto para protestar, mas o viu caído, braços largados, a cabeça tombada para a lateral, encostada na porta. O cinto ainda afivelado.

— Fred? — chamou, a voz tremendo.

Nada.

Tocou-lhe o ombro. A cabeça de Fred tombou com o toque, revelando um rosto... sem olhos. A boca escancarada num sorriso horrendo, sem dentes.

Fred estava morto.

Marlon gritou. Um grito que se perdeu na noite, engolido pelas sombras. Tentou abrir a porta, mas antes que o fizesse, viu pelo retrovisor... eles estavam vindo.

Centenas. Seres curvados, desgrenhados, olhos arregalados, se arrastando em direção ao carro. Lentos, mas certos, como formigas famintas.

A porta do motorista se abriu com violência. Mãos sujas, com unhas imensas, invadiram o carro. Puxaram o cadáver de Fred para fora. Marlon viu, apavorado, o corpo ser arrastado até a praça, desaparecendo sob a massa de criaturas encardidas.

Sentiu mãos em seu corpo. Agarrando. Puxando. Lutou, tentou se soltar, gritou até a garganta doer. Mas era inútil. O medo, o cansaço, a sede, a náusea, o fedor... tudo o paralisava.

Foi erguido. Arrastado. Carregado de volta à praça como um troféu maldito. E então viu as janelas.

Vultos nas sombras. Moradores observando. Não se escondiam mais.

— Socorro! Por favor! Me ajudem! — gritou, debatendo-se.

Apenas silêncio.

Carregado de cabeça para baixo, viu Fred... vivo, dentro do carro, dando partida. Como? O que...?

— Fred?! Não! Socorro! Não me deixa aqui!

Ignorado.

Foi jogado no chão. Um buraco. Uma cova. Já estava nu. As roupas espalhadas pelo caminho da procissão macabra.

Começaram a enterrá-lo. Torrões de terra vermelha. O rosto coberto. O ar escasso. Mas ainda havia força. Ainda havia instinto. Escalou a cova como um animal encurralado.

Agarrando-se ao tronco da grande árvore, subiu. Subiu como nunca antes. Como se toda sua vida dependesse daquilo.

Chegou ao galho mais alto. O ponto mais alto que já alcançara. Olhou para baixo: centenas de criaturas. Olhos arregalados, mãos erguidas, esperando.

Olhou para o horizonte. A lua emergia atrás dos prédios, iluminando a praça em tons pálidos. O medo transformou-se em êxtase. A dor, em euforia. A ansiedade, em alívio.

— Eu sou Marlon Abude! — bradou, peito estufado, braços abertos. — Ninguém pode me subjugar! Eu não sou uma fraude!

Nas janelas, as sombras aplaudiam. Os rostos à mostra.

— Isso! Você consegue! Você é amado! Pule! Enfrente seus medos!

Lá embaixo, os seres aguardavam. Braços estendidos. Olhos sedentos.

"Melhor uma morte súbita do que ser enterrado vivo."

Envolveu-se em cipós de Tradescantia zebrina, e pulou.

Na manhã seguinte

Choveu a noite toda. A terra estava úmida. As plantas vivas, vistosas, animadas pela água rica em nitrogênio. Gotas de água pendiam das folhas, refletindo a luz do sol como cristais. A brisa balançava os galhos da árvore, produzindo um som doce, sereno.

Transeuntes atravessavam a praça a caminho do trabalho, da escola, da vida. Paravam. Olhavam.

No galho mais alto, um homem nu, enforcado. O corpo balançava suavemente com o vento.

Abaixo, duas policiais colhiam relatos de moradores de rua.

— Tentamos impedir. Ele tava louco, parecia drogado. Gritava, socava o ar, se debatia. Conseguimos segurar ele um tempo, mas se soltou. Subiu na árvore com uma agilidade de atleta. Depois, pulou. Deu pra ouvir o estalo...

— Vocês moram aqui? — perguntou uma das policiais.

— Vivemos aqui. Acampamos nessa praça toda noite — respondeu um deles.

— Esse não é aquele YouTuber das histórias de terror? — murmurou a outra.

— Nunca ouvi falar — respondeu, desinteressada.

— Se for quem eu penso... bem, o fim dele daria um ótimo vídeo para o próprio canal.

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Se você chegou até aqui, após a leitura desse conto sombrio, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.


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Fonte foto de capa unsplash.com


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