Torto Arado - Uma obra ancestral, política e poética de Itamar Vieira Junior
- Pedro Sucupira
- 16 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de mai.
Torto Arado, romance do baiano Itamar Vieira Junior, é daqueles livros que não apenas aquecem o coração, eles o dilatam, o sacodem, o fazem pulsar em ritmo de terra e memória. Trata-se de uma narrativa que enraíza o leitor no solo da história brasileira e o devolve, com força poética, à dignidade tantas vezes esquecida de ser brasileiro. Ao lê-lo, não me senti apenas um leitor diante de uma boa história. Senti-me representado pela linguagem, pelos corpos descritos, pelos vínculos familiares, pela ancestralidade viva em cada linha. E também pelo próprio autor, um homem negro, nordestino, doutor em geografia, servidor público, cuja trajetória rompeu barreiras e hoje figura entre os grandes nomes da literatura contemporânea. Torto Arado entrou para minha lista de favoritos, mas também para uma lista mais íntima e rigorosa: a dos livros que, acredito, todos deveriam ler ao menos uma vez na vida.

A linguagem do romance é ao mesmo tempo clara, contida e lírica. Itamar domina o equilíbrio entre o simples e o simbólico, entre o direto e o evocativo, como poucos. Ele nos conduz à fictícia fazenda Água Negra, no sertão da Bahia, onde vivem Belonísia e Bibiana, duas irmãs que crescem sob um regime de trabalho análogo à escravidão. Uso aqui a palavra “trabalho” apenas por comodidade, o que há ali é exploração crua, ausência de liberdade, submissão histórica. Os moradores de Água Negra vivem sem o poder de escolha, presos a uma terra que cultivam há gerações, mas da qual não são reconhecidos como legítimos herdeiros.
A narrativa se constrói por meio de capítulos curtos, narrados em primeira pessoa. Desde as primeiras páginas, um acidente brutal e simbólico abala a trajetória das irmãs e instaura um clima de tensão e curiosidade que se sustenta até o desfecho — um desfecho inesperado, quase mítico, mas inteiramente coerente com os caminhos que a obra percorre. A partir desse ponto de ruptura, acompanhamos a vida no campo: a rotina árida dos que plantam na terra alheia, as celebrações de Jarê, a espiritualidade afro-brasileira que resiste e floresce mesmo sob o peso do abandono.
Torto Arado é, em sua essência, muito mais do que um drama familiar. É um romance de formação, mas também de denúncia; um texto social e político que se recusa a abrir mão do lirismo. Itamar Vieira Junior reconstrói uma tradição de literatura comprometida, que conjuga beleza estética com engajamento ético. Seus personagens, como o curandeiro Zeca Chapéu Grande, a parteira Sula, a silenciosa Miúda, o revolucionário Severo, não são apenas figuras literárias. São representações vívidas de saberes ancestrais, de resistências invisibilizadas, de subjetividades esmagadas pela ordem colonial que ainda estrutura o país.
Não há, em Torto Arado, excesso ou desperdício. Cada frase ocupa seu lugar com precisão. E, apesar da densidade temática, nunca me senti entediado, nunca percebi um só capítulo que pudesse ser descartado. É uma obra que mantém seu fôlego porque fala de algo que está entranhado em nós: a sensação de injustiça histórica, o desejo de pertencimento, a ferida aberta do Brasil real.
E é impossível não perceber como a fazenda Água Negra é uma metáfora viva do próprio país. O Brasil, como a fazenda, é habitado por gente que planta, cria filhos, constrói laços e é constantemente despossuída do que construiu. Os donos da terra, as elites econômicas e políticas, raramente estão presentes. Quando aparecem, é por imposição ou interesse. O verdadeiro Brasil, aquele que vive e trabalha, continua sendo vigiado por capatazes e manipulado por senhores distantes. E, como na fazenda, a colheita é arrancada das mãos dos que semearam.
Torto Arado é um espelho em que poucos ousam olhar. Um espelho que não nos afaga, mas nos convoca. O sentimento que acompanha a leitura é, muitas vezes, o de impotência diante da crueldade, mas também o da potência que nasce da consciência. É um livro que não anestesia, mas mobiliza. Não idealiza a pobreza, não estetiza o sofrimento, ele o nomeia, o localiza, o denuncia.
Ao final da leitura, permanece viva a imagem de Belonísia, a fúria que atravessou o tempo. “Filha da gente forte que atravessou o oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada.” Essa gente forte está em nós, e Torto Arado é sua voz, sua memória, seu grito — literário, ancestral e urgente. A terra, como afirma o livro, pertence a quem a vive. E é sobre ela, mesmo torta, que continuará florescendo o mais forte.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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