Deus como Problema Filosófico na Idade Média, por Tiago Lacerda — uma introdução acessível ao pensamento medieval e à intersecção entre fé e razão.
- Pedro Sucupira
- 1 de jun.
- 4 min de leitura
Falar sobre Deus sob a luz da filosofia sempre foi, e talvez sempre será, uma empreitada delicada. Em meio a convicções profundas e verdades assumidas como absolutas, questionar ou mesmo pensar filosoficamente sobre o divino parece, por vezes, uma ousadia. E, ainda assim, é exatamente esse o convite que Tiago Lacerda nos propõe em Deus como Problema Filosófico na Idade Média: um mergulho breve, porém lúcido, nas inquietações intelectuais que marcaram a filosofia cristã medieval.

O livro, com sua linguagem clara e didática, oferece uma introdução concisa aos principais pensadores da época e às ideias centrais que permearam o pensamento sobre Deus ao longo da Idade Média. Longe de ser uma leitura apenas para especialistas, a obra se propõe — e consegue — dialogar com o leitor curioso, interessado em compreender como fé e razão se entrelaçaram (e por vezes se confrontaram) ao longo dos séculos.
Lacerda inicia o percurso com Agostinho de Hipona, uma das figuras centrais da Patrística, destacando seu papel fundamental no uso da filosofia como instrumento de defesa e sistematização do cristianismo nascente. Inspirado pelo neoplatonismo, Agostinho recorre à razão e à introspecção filosófica para justificar os dogmas da fé cristã, abrindo caminho para uma tradição em que a filosofia se torna aliada da teologia. Sua busca por uma verdade interior e por um Deus que ilumina a razão marca o início de uma longa trajetória em que fé e razão caminham lado a lado.
A jornada segue com Boécio e sua indagação sobre a felicidade plena, tema que perpassa os séculos com surpreendente atualidade. Passamos por João Escoto Erígena e sua belíssima, e por vezes obscura, Epopeia do Retorno, onde o divino é pensado como origem e destino de todas as coisas, e onde a teofania (a manifestação do sagrado) se apresenta como chave interpretativa para entender o cosmos e o humano.
Em seguida, somos apresentados a Pedro Abelardo, precursor da escolástica, que utilizou a dialética como ferramenta para sondar os mistérios da fé, não para negá-los, mas para compreendê-los com maior profundidade. Seu método, por vezes controverso, abriu caminhos para uma teologia mais racional, menos dependente de autoridade e mais comprometida com o debate argumentativo.
O percurso se encerra com Tomás de Aquino, o “príncipe da escolástica”, cuja obra monumental — Suma Teológica — sintetiza séculos de tradição cristã e filosófica. Ao incorporar Aristóteles ao pensamento cristão, Aquino nos legou um sistema teológico de rigor filosófico notável, que ainda hoje influencia tanto o catolicismo quanto a filosofia ocidental.
Além dos filósofos, Lacerda faz breves, porém contundentes, incursões sobre o processo de consolidação da Igreja Católica como uma instituição hegemônica na Idade Média. Expõe como essa autoridade foi construída não apenas pela fé, mas sobretudo por meio da repressão, do controle do saber e da sistemática eliminação de dissensos. A Igreja não apenas silenciou vozes divergentes, como instrumentalizou a filosofia para legitimar seu domínio político e espiritual, moldando o pensamento de toda uma era segundo os interesses de uma casta clerical que se colocava como única intérprete da verdade.
O que torna esse livro relevante não é apenas o conteúdo que apresenta, mas o modo como o apresenta: com clareza, honestidade intelectual e, sobretudo, sem cair em armadilhas confessionais ou apologéticas. Lacerda não pretende convencer o leitor de nada, tampouco pregar doutrinas, seu objetivo é informar, esclarecer, provocar reflexão.
E aqui vale uma observação fundamental: em um mundo cada vez mais plural, onde crenças e não crenças coexistem em uma mesma esquina, pensar Deus filosoficamente torna-se não apenas legítimo, mas necessário. É justamente a recusa em discutir o indiscutível que alimenta o preconceito, a intolerância e a manipulação. A fé, quando pensada, se fortalece; quando imposta, se desfigura.
A reflexão filosófica sobre Deus nos tira do lugar-comum e nos obriga a contemplar o mistério com humildade, sem presunção de resposta definitiva. E é isso que este pequeno, mas valioso livro de Tiago Lacerda nos oferece: uma conversa franca, honesta, que respeita a fé, mas também a dúvida.
Leitura recomendada tanto para quem está começando a se aventurar pela filosofia quanto para aqueles que, mesmo já tendo trilhado os corredores da razão, ainda se comovem diante das grandes perguntas.
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Se você chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Meu nome é Pedro Sucupira, sou professor, pesquisador em formação e um curioso incansável. Amo estudar, ler e, recentemente, descobri o prazer inescapável da escrita. Sou um explorador apaixonado por literatura, comportamento humano, sociedade e por tudo que toca os campos da ciência e da saúde.
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